“A cultura do desmatamento é tão antiga quanto os tempos coloniais”, diz presidente da CBHSF

30/06/2020 - 11:01

Em alusão ao Dia Mundial do Meio Ambiente que foi comemorado no dia, 5 de junho, o Cada Minuto Entrevista desta semana conversou com Anivaldo Miranda, que é presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), um dos rios mais importantes para o país, e principalmente para região Nordeste.

Durante a entrevista o presidente da CBHSF comentou sobre a cultura do desmatamento no Brasil e disse que “A cultura é tão antiga quanto os tempos coloniais”.

Anivaldo comentou que um dos passos essenciais para que o Velho Chico possa receber uma maior atenção por parte do poder público é, a realização de sua “revitalização” que até, conforme disse o presidente, “dorme nas gavetas do governo federal”.

O presidente criticou o desmonte, que segundo ele vem sendo realizado pelo Governo Federal, junto as políticas de Meio Ambiente e disse que uma outra região além do Rio São Francisco no Brasil, clama por atenção e maiores cuidados.


Presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda


Confira a entrevista:

01 – Qual a realidade do Meio Ambiente em nosso país? Há quanto tempo ele não recebe a atenção que merece?

A política pública do meio ambiente vem sendo construída no Brasil há quase cinco décadas, sempre enfrentando uma considerável resistência, sobretudo de parte do poder econômico que ainda não assimilou majoritariamente a ideia de que o crescimento econômico tem limites se confrontado com a finitude dos recursos naturais do planeta, além de embutir, em relação à população como um todo, a necessidade de mudanças de comportamento que demandam muito tempo para acontecer como resultado da consolidação de uma nova cultura de produção e reprodução das condições de existência da espécie humana em termos de sustentabilidade.

No Brasil, essa política avançou em muitos sentidos e houve um acúmulo importante de conquistas no que diz respeito ao arcabouço jurídico, à ação administrativa dos governos, às iniciativas da sociedade e à consciência ambiental. Infelizmente, há algum tempo estamos enfrentando um ciclo reativo retrógrado, que a partir pincipalmente do atual governo federal está promovendo o desmonte descarado das políticas de meio ambiente com reflexos que serão muito ruins para os interesses estratégicos do país nos próximos anos. Neste sentido, a cúpula do atual Ministério do Meio Ambiente sequer esconde que seu principal objetivo é desconstruir essa política.

02 – O São Francisco é um dos principais rios do Brasil, qual a situação dele hoje? Qual fator tem sido o mais preocupante para os ambientalistas?

O Rio São Francisco é estratégico para o Brasil em vários sentidos, principalmente porque é, praticamente, a única fonte real de disponibilidade hídrica para três recortes importantíssimos do território brasileiro, ou seja, para o Norte de Minas Gerais, para a enorme região semiárida do Brasil e para o Nordeste onde representa cerca de 70 % da disponibilidade de água doce. Não por acaso é chamado de Rio da Integração Nacional. E é chamado assim exatamente pelos papéis importantes que desempenha. Por isso, o Rio São Francisco tem sido alvo há décadas de uma demanda crescente de água e de atividades que acumularam um processo de degradação que se aprofunda de forma comprometedora, refletindo-se sobretudo na diminuição progressiva de suas vazões, piora sensível da qualidade de suas águas, assoreamento do seu leito, erosão de suas margens, diminuição da biodiversidade de sua vida aquática e degradação de aquíferos que são essenciais para o seu escoamento de base nos períodos secos de cada ano. Felizmente, em 2020 as chuvas foram mais generosas e trouxeram alento e maior segurança hídrica depois da seca terrível iniciada em 2013. Porém, outros períodos de estiagens talvez ainda mais severas chegarão e isso deve nos servir de lição para que ponhamos em prática, o mais rápido possível, a tão decantada, mas nada praticada “revitalização do Velho Chico” que até hoje dorme nas gavetas do governo federal. Quanto ao fator que mais nos preocupa eu citaria a destruição dos biomas brasileiros, principalmente da Floresta Amazônica, mas também do Cerrado e da Caatinga que são essenciais para os nossos regimes de chuva e estão sendo criminosamente devastados em nome de um modelo obsoleto, antiético e predador de crescimento econômico desordenado e, no mais das vezes, feito à margem da lei.

03. Qual seriam as soluções que a curto e longo prazo poderiam serem executadas para que esse problema, seja atenuado?

A solução é, num contexto maior, fazer respeitar as leis ambientais e de gestão dos recursos hídricos. Para tanto é necessário que o governo federal e os governos dos estados da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco implantem, de fato, os instrumentos da gestão das águas em seus territórios enfrentando a pressão ostensiva das corporações e grupos econômicos que não querem respeitar regras para os seus negócios. Sem esses instrumentos, como planos de bacias, cadastramento dos usuários das águas, cobrança pelo uso da água bruta, sistemas confiáveis de outorga, fiscalização e monitoramento das águas superficiais e subterrâneas, enquadramento dos cursos hídricos e criação de fortes comitês de bacias, não iremos a lugar nenhum.

04. Qual o ponto do São Francisco que ao longo dos últimos anos, tem necessitado de uma maior atenção?

A degradação do Rio São Francisco é visível em toda a extensão de sua calha central que é de 2.700 quilômetros até desaguar no mar. Porém, até por motivos naturais, a região do Baixo São Francisco, sobretudo no trecho que divide Alagoas de Sergipe, tende a ser a mais impactada visto que recebe as águas de toda a bacia e, com a baixa das vazões, fica encurralada pela intrusão salina vinda do oceano. Não por acaso, no Baixo São Francisco a vida aquática sofre um acelerado processo de extinção. Mas, grosso modo, o cenário não é muito diferente nas demais regiões fisiográficas do rio, a saber, no Alto, Médio e Submédio trechos do Velho Chico onde o cenário de degradação é crescente.

05. O senhor acredita que o cidadão tem explorado o meio ambiente de maneira inadequada? Existe uma maneira correta?

Como eu disse acima, desde meados do século passado as lideranças da economia mundial perceberam que o crescimento econômico tem limites que esbarram na capacidade de suporte que tem o planeta Terra para atender às demandas de recursos naturais de uma população de seres humanos que já é de mais de 7 bilhões de almas e poderá chegar até 10 ou 12 bilhões nas décadas vindouras. Essas elites perceberam, mas pouco fizeram para refletir e adotar medidas sérias em relação a uma crise ambiental planetária que tende a se agravar no século do aquecimento global. Entretanto, a percepção da crise está chegando ao nível do cidadão comum na forma de catástrofes naturais ou daquelas decorrentes das atividades produtivas que cobram, cada vez mais, um preço alto para a economia de todos os países. Todavia, daí para convencer à maioria de que precisamos construir uma alternativa viável ao consumismo irracional dos nossos tempos, há ainda um considerável caminho a percorrer e uma corrida contra o tempo que a humanidade terá que empreender se não quiser ser extinta enquanto espécie viva.

06. Há uma explicação para que durante tantos anos, essa cultura do desmatamento esteja cada vez mais se perpetuando na sociedade?

A cultura do desmatamento é tão antiga quanto os tempos coloniais no Brasil. Mas o desmatamento atual não é fruto dessa cultura antiga que fazia a “limpa” dos terrenos para cultivos de modesta proporção. Atualmente, o desmatamento é fruto dos mecanismos mais perversos do chamado mercado mundial de commodities, um sistema corporativo globalizado e monopolista que, associado ao capital financeiro internacional, atua em todo o planeta com a única preocupação de obtenção de lucros crescentes às custas de um insuportável modelo de uso e ocupação das terras férteis, sem qualquer consideração para com a sustentabilidade de seus investimentos. No caso brasileiro, essa máquina trituradora de riquezas naturais está nos remetendo a uma regressão à época do descobrimento, quando trocávamos pau brasil por espelhinhos e bugigangas dos franceses, portugueses e outros piratas europeus. Só que hoje estamos exportando, na forma de grãos, terra, água, trabalho e riquezas minerais de forma dolorosamente desigual e a preço de banana, com custos ambientais cada vez mais dolorosos em matéria de destruição de florestas, degradação dos solos, perda de biodiversidade, alteração do regime de chuvas, processos erosivos e desertificação que nos custarão caro em futuro já próximo.

07 – No Vídeo divulgado, onde ocorreu uma das reuniões ministeriais este ano, ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu que o governo federal mudasse as regras de proteção ambiental e da área de agricultura, sem passar pelo Congresso. O ministro disse que era bom aproveitar este momento de, nas palavras dele, tranquilidade, enquanto a imprensa está concentrada na cobertura da pandemia. Como o senhor avalia isso?

O Ministro Salles protagonizou uma das cenas mais grotescas da história da política mundial do meio ambiente quando sugeriu aproveitar a pandemia para acelerar, sem chamar a atenção da mídia, o que ele chamou de “desregulamentação” mas que, na verdade, em matéria de meio ambiente, é o equivalente a desmonte e liquidação das conquistas ambientais e desestruturação dos órgãos e da política ambientais de alcance nacional como é o caso do IBAMA e do ICM-Bio. Estamos vivendo tempos sombrios e não sei até quando iremos engolir em seco essa antipolítica ambiental desastrosa. A hora, a meu ver, é de resistência a essa volta aos tempos do faroeste.

 

*Fonte: Cada Minuto
*Foto: Pixabay e Edson Oliveira