“Enquanto prevalecer o discurso da flexibilização das leis ambientais, tratando o meio ambiente como entrave ao desenvolvimento, estaremos na contramão”.
A promotora de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, Andressa de Oliveira Lanchotti, é a mulher à frente da árdua missão: coordenar a força-tarefa que investiga as causas da tragédia de Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Naquele dia 25 de janeiro, quando a barragem 1 da Mina Córrego do Feijão se rompeu, ela recebeu a notícia quando retornava do almoço para o trabalho, por volta das 13h30. Antes das 15h já se encontrava na cena do crime.
A primeira parada foi a Associação Comunitária do Feijão, onde estavam reunidos autoridades, o Corpo de Bombeiros e outras pessoas que se organizavam para a prestação de suporte aos atingidos. De lá mesmo, em contato com os colegas de Belo Horizonte, iniciou a elaboração de uma ação civil emergencial, que foi proposta às 18h do mesmo dia, bloqueando R$ 5 bilhões da Vale para ações emergenciais ambientais. Os colegas do eixo socioeconômico do MP conseguiram o bloqueio de outros R$ 5 bilhões para as questões de reparação aos atingidos.
Desde então, uma série de medidas vêm sendo tomadas para impedir novas tragédias. Para Lanchotti, “enquanto houver discurso em prol da flexibilização, no sentido de que o meio ambiente é um entrave ao desenvolvimento, nós estaremos na contramão. Novos eventos com perdas de vidas e danos ambientais gravíssimos poderão ocorrer”.
Há três anos o distrito de Mariana, Bento Rodrigues, foi devastado pelo rompimento da barragem de rejeitos de minério da Samarco. Foram mais de 60 milhões de m³ liberados no meio ambiente, 19 vítimas fatais, milhares de desabrigados, 35 cidades afetadas. No dia 25 de janeiro, esse filme de terror se repete, deixando um rastro inestimável de mortes e destruição. Afinal, de quem é a responsabilidade pela fiscalização das barragens? Como a senhora avalia o monitoramento dessas barragens?
A disposição de rejeitos em barragem é uma atividade de risco e atividades de risco devem ser controladas e fiscalizadas pelo poder de polícia do Estado. Infelizmente, a fiscalização estatal sobre as barragens de rejeitos não é efetiva e nem suficiente. Uma prova disso é o escasso número de fiscais à disposição da Agência Nacional de Mineração (ANM). Em Minas Gerais, a informação divulgada pela imprensa é de que apenas três fiscais são responsáveis por fiscalizar mais de 200 barragens no estado. Quanto ao monitoramento, na minha opinião, não está funcionando, a prova disso são dois desastres em pouco mais de três anos, envolvendo a mesma empresa. Podemos ainda listar aqui os desastres da mineradora Rio Verde, em 2001, no distrito de São Sebastião das Águas Claras, em Nova Lima (MG), e da mineradora Herculano, em 2014, em Itabirito (MG).
A Vale vem sendo acusada de, senão falsear, induzir laudos que a favoreçam. Isso é verdade?
O caso do rompimento da barragem de Brumadinho e suas repercussões penais demonstraram a existência de conflitos de interesses entre as empresas certificadoras e as empresas mineradoras. Isso está especificado na recomendação expedida por quatro instituições públicas (MPMG, MPF, PCMG e PF) para o afastamento do presidente e de diretores da Vale. Esse conflito é justificado pelo fato de que uma mesma empresa pode ser contratada para certificar estabilidade de barragens e ser contratada pela empresa mineradora para outros projetos, como por exemplo, para o desenvolvimento de projetos de descomissionamento, descaracterização. Então, a empresa fica numa posição de interesses contrapostos, porque se ela certifica a situação real, ela pode perder um contrato. Isso é uma fragilidade do sistema. O automonitoramento é importante, desde que seja independente, de fato, e que haja o controle superior do poder público.
Como o Ministério Público de Minas Gerais tem atuado?
Nossa atuação se dá em três eixos: socioambiental, socioeconômico e criminal. Fui designada para ser a coordenadora da força-tarefa que investiga as causas da tragédia e busca a responsabilização civil e criminal dos culpados. A partir daí, começamos a tomar várias iniciativas. No eixo socioeconômico fizemos um Termo de Acordo Preliminar (TAP) que garantiu o pagamento emergencial de um salário mínimo aos atingidos de Brumadinho. O pagamento foi estendido aos residentes no raio de 1 km da calha do Rio Paraopeba até Pompéu, que era onde os rejeitos tinham chegado até então. Para estes, garantimos entre um ou meio salário mínimo. Agora, o nosso objetivo é a reparação integral de todos os atingidos.
No eixo socioambiental, uma atuação que considero muito importante, foi o acionamento de uma auditoria externa independente. No dia 25 de janeiro, Brumadinho chegou a ser de novo evacuada, havia um risco de rompimento da barragem B6. Eu estava lá quando isso aconteceu. Houve acionamento de nível 2 de emergência com sirene. Se rompesse a B6, o desastre ambiental seria ainda maior. A empresa de auditoria fez um planejamento e, no dia seguinte, já havia equipes, inclusive internacionais, em campo. Posteriormente, nós fizemos um acordo com a Vale, extrajudicial, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), no qual ela se compromete a custear esse trabalho de auditoria do MP até a recuperação integral de todos os danos provocados à bacia do Rio Paraopeba.
O primeiro relatório apresentou as medidas de contenção que já foram tomadas e o planejamento de curto, médio e longo prazos tanto da contenção de rejeitos quanto das estruturas geotécnicas remanescentes e das que serão construídas também, para garantir a estabilidade do complexo até o próximo período chuvoso. Nossa preocupação é que essas obras sejam concluídas até o dia 30 de setembro, para que não tenha mais carreamento de rejeitos com o avanço do período chuvoso.
No eixo criminal, no mesmo dia da tragédia, ingressamos com pedidos judiciais de prisão temporária, que foram já deferidos na terça-feira seguinte. Com isso, conseguimos em dois dias úteis que essas prisões fossem efetivadas para acautelamento e coleta de provas.
E em relação à fauna e ao patrimônio cultural da região atingida?
Desde o primeiro dia, o MPMG tomou medidas de proteção e resgate do patrimônio cultural atingido e de resgate da fauna na área atingida. Temos reports diários até hoje das medidas de resgate da fauna. Recomendamos ao Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) o monitoramento da qualidade da água do Rio Paraopeba e seus afluentes, com vistas a combater a sede dos animais e prevenir novas infrações contra a fauna. Recomendamos a coibição da piora da qualidade da água do Paraopeba, com vistas a combater a mortandade de peixes, e também a elaboração de um plano de ação preventivo de resgate e proteção ao patrimônio histórico e cultural.
A Política Estadual de Segurança de Barragens entrou em vigor no dia 26 de fevereiro, com a publicação da Lei 23.291. O que muda com essa nova legislação?
Um primeiro passo dado foi a aprovação. São várias inovações e aprimoramentos. Um exemplo é a exigência das melhores tecnologias disponíveis antes de se optar por barragem. A lei exige que o empreendedor demonstre porque outras tecnologias de menor risco não foram adotadas. Sabemos que há tecnologias mais seguras de disposição de rejeitos que utilizam, em regra, o desaguamento. O empilhamento do rejeito arenoso e o espessamento do rejeito lamoso são tecnologias já utilizadas em outros projetos no Brasil. Além disso, a Política Estadual de Segurança de Barragens veda a construção ou alteamento de barragens a montante. Esse método é tido por especialistas como obsoleto e está relacionado a vários desastres ocorridos com barragens no mundo.
Quais são os aprimoramentos para a disposição de rejeitos de mineração que a nova lei traz?
O cerne da questão é a proibição da construção de barragens em local com moradias na zona de autosalvamento. Muitas vidas poderiam ter sido poupadas se essa lei já estivesse em vigor. Pelos vídeos de Brumadinho, podemos ver que, em menos de um minuto, as pessoas foram atingidas. Essa lei é fruto de construção coletiva de órgãos públicos. O projeto foi enviado para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais em junho de 2016, com mais de 60 mil assinaturas e agora foi finalmente aprovado.
O que ainda pode ser ampliado na legislação para eliminar a ocorrência de desastres?
Uma parte do problema começou a ser resolvida com a melhora da regulação, mas nós precisamos ainda ter uma melhora na fiscalização e na gestão das barragens. No geral, é preciso aprimorar o sistema brasileiro de gestão ambiental. Enquanto se tiver o discurso em prol da flexibilização das leis ambientais, tratando o meio ambiente como entrave ao desenvolvimento, estaremos na contramão. Novos eventos com perdas de vidas e danos ambientais gravíssimos poderão ocorrer.
A lama vai chegar ao Rio São Francisco?
O que temos de indicação é que não vai chegar no São Francisco, porque a capacidade de reserva da Usina de Três Marias é infinitamente superior ao volume de rejeitos que vazaram, então, toda a expectativa é de que a onda chegaria, no pior dos cenários, até à Usina de Três Marias.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Mariana Martins
*Fotos: Bianca Aun