Revista Chico: Bordando ideias para transformar

14/01/2019 - 10:36

Nascente do Rio São Francisco representada em bordado


Fundado há três décadas, o Grupo Matizes Dumont transformou uma tradição familiar, o bordado, em arte. E usa agulha e linha para pespontar os caminhos da sustentabilidade e da preservação ambiental


Foi em Pirapora, a 340 quilômetros de Belo Horizonte, ouvindo o balançar do Velho Chico, que tudo começou. Dona Antônia Zulma Diniz Dumont era uma bordadeira de mão cheia. Crivo, rechiliê e outros pontos antigos, não havia nada que não pudesse fazer com uma agulha na mão. De mãe para filhos, o afazer passou à prole: Demóstenes, Ângela, Marilu, Martha e Sávia. E chegou às netas: Lena, Luiza e Luana. Deste trançado de gerações, surgiu o grupo Matizes Dumont. O coletivo familiar que transformou o que sempre fora um passatempo caseiro em arte para se expor em museu, tecendo em painéis realistas o cotidiano e a cultura brasileira.
Fundado há três décadas, o Matizes Dumont está bordando e rebordando também a própria história, ao retirar o bordado tradicional da sala da casa e levá-lo às paredes de museus e páginas de livros. O coletivo já ilustrou obras de Jorge Amado, Manoel de Barros, Rubem Alves, Marina Colasanti, entre outros. Na lista de prêmios que recebeu pelos trabalhos de ilustração, estão dois Jabutis, em 1988 e 2000, um dos principais da literatura. A partir de 1994, começou a frequentar as paredes de galerias de arte e museus. Em Brasília, fez exposições individuais em espaços como Museu da República e Teatro Nacional Cláudio Santoro. Fora do Distrito Federal, onde o Matizes Dumont se radicou, passeou por importantes instituições de Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e também Europa, com mostras na Itália e França.

Bordado “Lavadeiras” representa uma das tradições do Rio São Francisco

Na cadência do Velho Chico
Além de fazer arte, o Matizes Dumont resolveu ligar os pontos e criou o Instituto de Promoção Cultural Antônia Dumont (ICAD), em Pirapora, onde desenvolve alguns dos seus projetos socioambientais. O ICAD é um espaço educativo e de convivência, de compartilhamento de ideias e ações voltadas para a cultura, educação, saúde, meio ambiente e revitalização de saberes antigos. Empenhados na discussão sobre o uso múltiplo das águas e da formação dos Comitês de Bacias do São Francisco, em 1999 e em 2000, os Dumont pegaram a barca em Pirapora, chamada de “Barranqueira”, e seguiram viagem, de porto em porto: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
O projeto “Caminho das Águas” percorreu 26 cidades do vale do Rio São Francisco e mobilizou regionalmente cerca de 40.000 pessoas. Hoje não há água suficiente para navegar, mas a luta segue, fazendo oficinas de mobilização nas comunidades ribeirinhas. Um grande painel vem sendo bordado coletivamente e a obra em progresso visa mobilizar o país para o ocaso do Velho Chico. Ao longo do caminho, em oficinas de bordados, um infinita colcha de paisagens, costumes, lendas vem sendo delicadamente construída.
“Viajando na barca Barranqueira, ou em pequenos barcos, catamarãs ou mesmo por terra, fomos puxando o fio que o povo borda e reborda com suor, vontade, força e alegria de vencer a dor a cada dia”, comentou Marilu Dumont. Segundo ela, o painel já tem cerca de cinco metros de comprimento: “Começamos em julho de 1999. As imagens foram sendo construídas pela comunidade. E queremos continuar, sempre usando o bordado para despertar discussões sobre o São Francisco”.

“No caminho das Águas” contém o mapa do rio São Francisco. Seu bordado foi iniciado em 1999 e segue Bem contínua bordação pelas comunidades brasileiras em oportunidades nas quais se discute e borda águas

 
O trabalho educativo do grupo Matizes Dumont já soma diversas iniciativas, entre elas o projeto “Bordando o rio Ebro”, realizado em Zaragoza, na Espanha, o Projeto Entre Rios em desenvolvimento nos estados do Mato Grosso, São Paulo, Goiás e Minas Gerais. “Realizamos muitos projetos nas áreas de educação, da cultura, da preservação ambiental, do planejamento”, comentou Sávia: “Bordar, para nós, é um ato de convivência, de registro das memórias, de reflexão sobre temas diversos como água, flora, fauna, gente, lugares, sentimentos… E ainda um exercício de reflexão e transformação”.
 

*Texto: Karla Monteiro 
*Fotos: Grupo Matizes Dumont