Águas guardadas

16/02/2018 - 9:18

Ele nasceu em Pirapora, Minas Gerais. Filho de pescador, cresceu com os pés plantados fundo no Velho Chico. Hoje, um dos expoentes da arte mineira, Davi de Jesus do Nascimento transformou o rio que lhe impregnou a alma em matéria prima para a sua obra. Nestas páginas, ele por ele mesmo, em texto e fotografias

 “Quando nasci, em 1997, no fulgor norte-mineiro, banharam-me com o mesmo nome de meu pai, Davi de Jesus do Nascimento: pescador, marceneiro, escultor de canoas e termômetro necessário para todos os meus trabalhos. Sou artista plástico, barranqueiro de Pirapora (MG), gerado às margens do Rio São Francisco, curso d’água de minha pesquisa. Velejo num diálogo profundo dos fluxos de correnteza e ponte-travessia das memórias. O todo de um cotidiano e ancestralidade ribeirinha. Nostalgia densa, que aspira despertar, preservar ou trazer de volta o rio de cada pessoa. Correr raso entre as pedras.
Há três anos meu trabalho tomou ímpeto, quando me foram herdadas as fotografias analógicas da família, tiradas entre a década de 80 e início dos anos 2000. Registros de acampamentos, pescarias e acontecimentos de quintal com cheiro de terra molhada compõem o acervo. Costumo dizer que são águas guardadas, remendo de memórias estendidas onde houver banho e descamação.
À medida que fui garimpando os registros, comecei a restaurar, digitalizar em alta resolução, tratar com as cores de minha paleta terrosa e escrever pequenos fragmentos de texto-delírio molhado. Trajeto de afagos desde onde o fluente Velho Chico torna-se navegável e começa a tomar rumo de desaguar no mar.
A relação com a escrita veio desde pirralho, quando minha mãe, bibliotecária, me presenteou com livros de autores peixes, referências. Manoel de Barros e Guimarães Rosa. Amo-vos. Corpos de água e aguaceiro cortado rente à pele-calhau são pontes que ligam todos os suportes que trabalho e possibilitam atravessar nadando também. Nado no raso-rasgo. Um de meus maiores interesses para a nascença na prática primária da pintura é a terra, mãe inicial.

O artista Davi de Jesus do Nascimento

A aquarela foi a primeira técnica que utilizei para principiar minha pesquisa de rio na pintura. Fiz os primeiros trabalhos molhando o pincel na proa dos barcos. Percebi que a aguada dialoga profundamente com os fluxos da correnteza que desço boiando. Depois passei para os estudos com tinta a óleo, em fragmentos de vela da canoa de meu pai. Tenho grande influência de meu falecido bisavô João das Queimadas, que foi marinheiro, carpinteiro dos Vapores e escritor.
Nas performances, utilizo o meu corpo como instrumento de medida do mundo. Corpo-médium, confrontado e confundido com a natureza. Uma natureza aquática, barrenta e silenciosa. Podendo ser lida como isca, peixe e pedra. Percorro pela fotografia analógica e instantânea. Apanho fragmentos ao andar nas ruas de minha cidade e percebo quase-rios, no árido. Sede de enchente. Partes que se juntam – putrefatas – e tornam-se objetos inteiros das águas saofranciscanas. Esculturas que sangram.
É preciso estar atento à resistência e morte do rio. Aos gemidos das carrancas naufragadas. Gritos de alertas de surubins, curimatãs e saruês. O cheiro de matrinchã podre. Uma casa com a marca do nível da última enchente fedendo a pus de semente de tamboril. A manga rosa verde com sal de suor do corpo. Cemitério de corpos mortos boiando embaixo da sombra da ponte”.

Confira a arte de Davi de Jesus