Quando os índios tupis que habitavam o oeste da Bahia batizaram a cidade de Ibotirama, contribuíram para traçar um destino para o local. O nome Ibotirama quer dizer “flor promissora”. E é justamente da floração de espécies que habitam as margens alagadas do Velho Chico (como jurema, aroeira, juazeiro, angico e até as frutíferas mangueira e umbuzeiro) que tem brotado esperança para a comunidade.
Com ajuda do clima quente, com médias de 30◦C, e das abelhas africanizadas que povoam a região, a produção de mel tem ocupado importante espaço na geração de emprego e renda nesse e em mais 15 municípios baianos. Organizados em torno da Cooperativa Regional de Apicultores do Médio São Francisco (Coopamesf), 92 cooperados se dedicam ao processo de transformação do néctar das flores em um dos alimentos mais nutritivos e populares da culinária brasileira.
A diversidade de floradas possibilita um produto diferenciado, cultivado de forma orgânica, que é exportado para outros países e já foi reconhecido como o melhor mel da Bahia, durante o VI Congresso Baiano de Apicultura e Meliponicultura. A marca leva o nome daquele que possibilita todas as condições naturais para essa rica atividade: Velho Chico.
Desde muito pequeno, enquanto ajudava seu pai na lida com o gado, Joselito Sodré Queiroz se acostumou a ver a movimentação de apicultores, circulando com abelhas e colmeias no distrito de Olhos D’Água, em Ibotirama, oeste da Bahia. Um deles dizia ao jovem: “Larga esses animais e vem nos ajudar aqui. A abelha é que dá dinheiro, rapaz”. Joselito custou a acreditar. “Eu pensava: como um bicho tão pequeno, bem menor que um boi, pode dar mais dinheiro?”. A aproximação com a produção de mel acabou se tornando inevitável, por conta do crescente desenvolvimento dessa cultura na região. “Comecei com dez colmeias e logo comprovei que o retorno era muito rápido. Aí peguei gosto”, conta o apicultor, hoje com 19 anos, o mais jovem membro da Cooperativa Regional de Apicultores do Médio São Francisco (Coopamesf). São 92 cooperados, de 16 municípios do oeste baiano, dedicados à produção do mel e da cera, que levam a marca Velho Chico em homenagem ao rio que oferece as condições necessárias para uma produção farta e de qualidade.
A cooperativa ganhou o prêmio de “melhor mel da Bahia”, por ocasião do VI Congresso Baiano de Apicultura e Meliponicultura, realizado em julho deste ano, em Ilhéus, no sul do estado. O congresso foi promovido pelo Governo do Estado da Bahia, pela Confederação Brasileira de Apicultura, Federação Baiana de Apicultura e Meliponicultura e Comissão Executiva Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac).
Joselito Sodré fez curso técnico em Agropecuária e viu as dez colmeias, adquiridas em um programa da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) se transformaram em 33 unidades, gerando uma produção de 200 kg na última safra, algo em torno de R$1.200,00. Nada mal para um jovem apicultor que via os prejuízos com a criação de gado aumentarem ano após ano, por conta da seca.
Aliás, comparativamente, as vantagens são muitas: enquanto uma cabeça de gado precisa de aproximadamente 45 litros diários de água, basta meio litro de água por dia para abastecer uma colmeia com 60 mil abelhas. Além de exigir pouca água, a apicultura também não carece de grandes áreas. As colmeias de Joselito, por exemplo, estão localizadas nas terras de familiares, como o avô, convencido pelo neto a colaborar no trabalho com as abelhas. “A apicultura precisa de pouca terra, que pode ser emprestada, pois não causa transtorno. Diferentemente do gado, não exige cerca e nem causa reclamação de vizinhos”, conta, lembrando-se dos tempos em que tinha que resolver problemas gerados pelos bois do pai, que adentravam terrenos de outros proprietários.
Flor promissora
O nome Ibotirama significa “flor promissora” e foi dado pelos índios tupi em referência ao futuro que vislumbravam nas flores do local. São elas que, geradas por plantas como jurema, aroeira, juazeiro e angico, brotam nas margens alagadas do Velho Chico e, associadas ao clima quente (média acima de 30◦C), favorecem as atividades digestivas da “abelha africanizada”, espécie adequada à região por ser resistente aos períodos de estiagem. A produção é maior no período chuvoso, entre novembro e abril, apesar da falta de regularidade ultimamente.
“A matéria-prima da abelha é a flor, também encontrada em árvores frutíferas comuns no São Francisco, como umbuzeiro, cajazeira e mangueira”, conforme explica o técnico em agropecuária Ronilson Nogueira de Oliveira, atual coordenador da Coopamesf. Ele destaca que a apicultura se associa a outras culturas, quando os fazendeiros alugam suas terras dominadas pela fruticultura na época da florada, permitindo a polinização, vantajosa para ambos, apicultores e fruticultores.
“A florada diversificada garante que o mel Velho Chico tenha mais qualidade, mais nutrientes e um sabor consistente”, defende Balbino Almeida de Souza, presidente da cooperativa. “Essa bacia é muito propícia. Além de água, em suas margens há matas antigas, o que possibilita um mel todo orgânico, sem utilização de defensivos químicos”, destaca. Souza faz questão de ressaltar o baixo impacto ambiental da produção de mel. “É uma atividade que garante renda para as famílias, mas de forma sustentável, pois produz sem prejudicar o meio ambiente”, afirma.
Agricultor de milho, mandioca e feijão, Balbino Souza começou a trabalhar com o mel há 30 anos, quando percebeu a vocação do local para essa cultura. “Quando criamos a Associação Comunitária de Itapeba éramos menos de 30 apicultores. A produção foi crescendo, atraindo mais gente, até que sentimos a necessidade de criar uma cooperativa”, diz. Ele destaca que a partir daí foram chegando mais parcerias, captação de recursos e maior organização da cadeia produtiva.
Já o coordenador Ronilson Oliveira adquiriu a experiência de interagir diretamente com os apicultores quando atuou como agente comunitário de apicultura, entre 2013 e 2014, prestando assistência técnica a 350 trabalhadores rurais, muitos desses hoje pertencentes ao quadro da Coopamesf. “Mesmo com a estiagem, a produção de mel tem conseguido se sobressair, enfrentando as dificuldades”. De acordo com o coordenador, a cooperativa registrou uma produção de 80 toneladas na última safra. Desse total, cerca de 30 toneladas são exportadas para países como Alemanha, França e Estados Unidos, através de parceria com a marca Melbras. No ano passado, a exportação representou uma venda de R$218 mil. Outra parte considerável da produção (cerca de 25 toneladas) é comercializada por meio de iniciativas do governo, como o Programa Nacional da Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos. O restante vai para as prateleiras dos supermercados de cidades da região.
“Essa é a quantidade que passa pela cooperativa, mas sabemos que a região produz mais. Mesmo assim, é pouco, abaixo do que podemos produzir”, afirma Oliveira. A expectativa em torno do crescimento da produção foi gerada, segundo o coordenador, após inúmeras assistências técnicas e infraestrutura oferecidas por programas governamentais. Entre os obstáculos encontrados no caminho dos apicultores estão “a irregularidade das chuvas, que estão custando a cair com intensidade na região, e as dificuldades no manejo, que permanecem mesmo após as capacitações”, lista.
Metas de produção
Com características de dois importantes biomas brasileiros – a Caatinga e a Chapada –, Ibotirama se destaca no oeste baiano. O município possui 28 mil habitantes, sendo quase três mil deles dedicados à pesca. Outras atividades desenvolvidas na cidade são o comércio, a bovinocultura e a agricultura de subsistência, mas a apicultura tem tudo para se expandir, como atesta boa parte dos apicultores da região. Eles apontam que o exemplo a ser seguido está logo ao lado, na comunidade de Bandarra, que pertence ao município vizinho de Morpará, também na Bahia, cidade com pouco mais de oito mil habitantes. A produção de mel cresceu tanto no povoado que ultrapassou a localidade de Itapeba, primeiro grande centro de produção de Ibotirama, onde está localizado o Entreposto da Coopamesf.
Para se ter uma ideia, somente os apicultores do povoado de Bandarra conseguiram produzir no ano passado algo em torno de 35 toneladas de mel, por meio da Associação Flor de Cactos, que reúne 50 apicultores, alguns deles pertencentes à Cooperativa do Médio São Francisco. O técnico agrícola Paulo Mariano explica que o diferencial de Bandarra tem sido a dedicação dos envolvidos. “A população de lá tem a apicultura como prioridade, não mais se dividindo em outras atividades. Há também a presença significativa de jovens na localidade”. Turma da geração de Joselito, que o jovem apicultor conhece bem. “Já visitei a cidade para ver de perto o trabalho que fazem por lá e aprender mais. Além disso, tem os cursos oferecidos pela Coopamesf. Eu já fiz dois, inclusive um específico sobre como lidar com a abelha-rainha”, conta.
A criação da cooperativa, há dez anos, mudou a realidade dos apicultores. Paulo Mariano, por exemplo, que é técnico agrícola, atualmente cumpre o seu primeiro mandato como vereador de Ibotirama. Antes de atuar na política local, ele exerceu a atividade de apicultor e relata como era o processo quando não existia a cooperativa. “Não tínhamos Casa do Mel (Unidades de Beneficiamento do Mel) e nem toda essa rede de proteção, como os equipamentos e vestimentas adequadas. Para nos proteger das abelhas, trabalhávamos apenas à noite, evitando ser percebidos por elas, que podiam nos atacar”, recorda.
Além de oferecer capacitações e intermediar a comercialização do que é produzido, a cooperativa faz o beneficiamento do produto, que inclui decantar (para a retirada de impurezas), embalar, rotular, inspecionar e comercializar o mel em bisnagas e sachês. O envasamento realizado no entreposto de Itapeba ainda é manual e tem capacidade para beneficiar um total de 12 mil kg por mês, em diferentes formatos de embalagens (1kg, 500g, 210g e sachês de 4g).
Todo o processo de entreposto é conduzido por Balbino Souza, presidente da cooperativa e que tem metas ambiciosas para a organização de apicultores. “Queremos continuar investindo em equipamentos, aumentar o número de Unidades de Beneficiamentos de Mel – nosso desejo é ter uma em cada um dos 16 municípios do território do Velho Chico – e agregar mais cooperados, trazendo mais gente para a atividade, principalmente os jovens”, pontua.
Diante disso, a expectativa da cooperativa só poderia ser otimista. “Já se percebe o retorno de pessoas da cidade para o campo, por conta das possibilidades trazidas pelo mel, além de se estar absorvendo pessoas de outras culturas, destaca o coordenador Ronilson Oliveira. Eles reforçam que a união dos cooperados possibilitou que enfrentassem períodos críticos, sem chuva, ainda que alguns tenham se sentido desestimulados, especialmente os jovens. “Os mais novos não esperam, né? Vão para outras cidades, procuram outras atividades. Mas quem ficou percebeu a evolução”, destaca o presidente da cooperativa.
Entendendo o processo
Considerados insetos alquimistas, as abelhas alteram a química do açúcar retirado das flores. A fabricação do mel começa com a coleta do néctar nas flores. Ele é guardado em uma bolsa, no corpo da abelha, e levado para a colmeia. Lá, glândulas localizadas na cabeça das abelhas secretam duas enzimas que reagem com o açúcar do néctar. Uma enzima, chamada invertase, transforma o néctar em glicose e frutose. A outra enzima, chamada glicose oxidase, confere acidez ao néctar, impedindo sua fermentação. Ao bater as asas, a abelha seca o excesso de água presente no néctar, finalizando a obtenção do mel, um produto que resiste naturalmente a mofos, fungos e outras bactérias, podendo durar muitos anos sem refrigeração. Todo esse processo é realizado para garantir a alimentação da própria colmeia. O objetivo principal da produção de mel é manter o suprimento alimentar das abelhas, que se alimentam do próprio mel que produzem. Além disso, elas se alimentam do pólen que geralmente vem preso no processo de captação do néctar. O pólen seria, então, uma importante variação no cardápio alimentar das abelhas.
*Esta matéria foi veiculada na Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 07 | NOV 2015. Para ler a revista completa, acesse.
ASCOM – Assessoria de Comunicação do CBHSF