Cerca de 81 mil indígenas de 230 territórios encontraram-se ameaçados pela pandemia do novo coronavírus. Numa luta sem quartel contra o descaso e o abandono, os povos originários do Brasil precisam de apoio para salvar não só vidas, mas um patrimônio cultural e ambiental da humanidade
No dia 18 de junho, a Covid-19 levou Paulinho Paiakan. E, pouco mais de um mês depois, Aritana Yawalapiti. A história dos dois líderes se confunde com a história da luta pelos direitos indígenas. Nos idos da década de 80, Paiakan ficara conhecido ao liderar duas batalhas: o reconhecimento dos direitos dos índios na Constituição de 1988 e o cancelamento do primeiro projeto da Hidrelétrica de Belo Monte. No começo dos anos 90, ele voltaria ao noticiário ao travar a luta pela demarcação da terra Kayapó. Já Aritana encarnava a guerra pela preservação do Alto Xingu, além de ser um dos últimos a falar o idioma tradicional do seu povo, o Yawalapiti. Com a expansão da pandemia do coronavírus nas aldeias, os dois guerreiros agora se tornam símbolo do descaso que coloca em risco os povos originários do Brasil.
De norte a sul, a triste estatística avança, dia após dia, chocando o mundo. Em 1 de dezembro, somavam-se 40.340 casos da Covid-19 entre os índios, com 881 mortes registradas e 161 povos infectados. No brasil, a marca atingia, então, 6.335.878 contaminados, com 173.120 mortos. Segundo Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), a realidade é ainda muito pior, devido à subnotificação. Nos seus cálculos os casos de morte por Covid-19 ultrapassam em muito os números oficiais. Cerca de 81 mil indígenas de 230 territórios encontram-se sob ameaça, assistindo atônitos o alastramento do novo cororonavírus nas aldeias. A média é de quatro mortes de indígenas por semana.
“Quando tomamos consciência da pandemia, nossas organizações, sob a coordenação da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), passaram a orientar as lideranças sobre os principais cuidados a se tomar e também orientamos no sentido de fechamento das aldeias”, comentou Tuxá. “Depois mandamos ofício a todos os governadores de estado e ao governo federal solicitando suporte para a criação de barreiras sanitárias. Só dois governadores responderam, do Maranhão e de São Paulo”.
Tem sido uma luta sem quartel, uma guerra de golpes baixos. No começo de julho, o presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos a Lei 14.0212, que prevê medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia do novo coronavírus. O presidente barrou 16 pontos. Entre eles, os que previam o acesso das aldeias à água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos. Três meses depois, com os vetos derrubados pelo Congresso Nacional, o plano de emergência previsto pela nova lei ainda não entrou em vigor. De acordo com Tuxá: “Já temos sete meses de pandemia e até hoje o plano emergencial não foi aplicado. Tem lugares que já atingiu imunidade de rebanho. A APIB está ingressando com medida no STF para exigir aplicação da lei”.
Se não bastasse o não cumprimento das medidas legais, o governo federal parece ainda trabalhar com afinco para enfraquecer as lideranças indígenas. Em 18 de setembro, um post no Instagram do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, general Augusto Heleno, causou indignação, repercutindo nos principais jornais do mundo. Conforme Heleno, a APIB está por trás de um site cujo objetivo é publicar “fake news” contra o Brasil. O general citou nominalmente Sônia Guajajara, uma das principais lideranças indígenas do país, acusando-a de capitanear campanha pelo boicote internacional de produtos brasileiros. No texto considerado delirante pela imprensa, o ministro do GSI ainda lembrou que Guajajara é ligada a Leonardo Di Caprio, o inimigo eleito dos bolsonaristas.
“As acusações, além de levianas e mentirosas, são irresponsáveis, pois colocam em risco a segurança dos citados. Estamos sendo ameaçados”, declarou Tuxá. “Quase tudo o que estamos conseguindo para proteger as aldeias é através de vaquinhas e de ONGs. Nosso povo está fazendo o enfrentamento ao governo Bolsonaro em um nível muito superior do que o que se vê por aí”.
Linha do tempo
Há dez anos, em 2010, o grande xamã Davi Kopenawa publicou, na França, um livro profético: “A Queda do Céu”, republicado no Brasil pela Companhia das Letras. Um relato excepcional, ao mesmo tempo testemunho autobiográfico e libelo contra a destruição da floresta Amazônica. Na obra, as meditações de Kopenawa sobre o contato predador do homem branco, com o seu cortejo de violência, destruição e epidemias. O livro se tornou ferramenta crítica para questionar a noção de progresso e desenvolvimento. O país conta hoje 305 povos e 274 línguas diferentes. Com a pandemia do novo coronavírus, a memória histórica de epidemias voltou a assombrar. Elas chegavam para dizimar aldeias, etnias inteiras. De acordo com Andrey Moreira Cardoso, do Departamento de Epidemias da Escola Nacional de Saúde Pública, da da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o país pode estar prestes a assistir a outra tragédia: “Devido a diversos fatores, como falta de acesso a saneamento básico, desnutrição e anemia, as populações indígenas são as mais vulneráveis ao contágio do Covid-19”.
Não seria difícil traçar uma linha do tempo da tragédia. Em 25 de fevereiro, ocorreu a primeira notificação da Covid-19 no Brasil, um homem de 61 anos que chegara de viagem à Itália. Em vez de aumentar a proteção nas aldeias, no dia 6 de março, a Fundação Nacional do Índio (Funai) suspendeu ações sociais, alegando falta de orçamento, como, por exemplo, distribuição de cestas básicas. Com isso, os indígenas foram obrigados a ir à luta, vendendo artesanatos nas cidades, o que aumentou a vulnerabilidade das aldeias. Com os passar dos dias, os absurdos foram se atropelando. Desconhecendo completamente a cultura indígena, os órgãos governamentais responsáveis pela saúde dos índios recomendaram a permanência dos contaminados nas comunidades. Sem casas compartimentadas, o novo coronavírus ficara livre para procurar vítimas. Só em 17 de março a Funai resolveu agir – ou não. Através de portaria, restringiu a entrada de estranhos em terras demarcadas, sem, no entanto, fazer o combate aos invasores. Ou seja: na prática, nada foi feito. Em 23 de março, veio a reação. Os próprios indígenas foram para as redes sociais, iniciando campanhas de conscientização e de denúncias contra a inação do Ministério da Saúde.
O primeiro caso da Covid-19 numa aldeia foi registrado no dia 1º de abril. Uma jovem de 20 anos, da etnia Kocama, no Amazonas. E o primeiro caso de morte aconteceu oito dias depois, no dia 9 de abril, um jovem Yanomami. Naquele começo de abril, Bolsonaro sancionou a lei do auxílio emergencial. Como boa parte das tribos não tem Internet, os indígenas eram mais uma vez ignorados, tendo que deixar as comunidades para se arriscarem na lan-house mais próxima. Nas semanas que se seguiram, a contaminação andou a galope, sendo vetores até mesmo os próprios agentes de saúde. Ao mesmo tempo, a Funai recebia 11 milhões de reais para proteger os indígenas do coronavírus, mas só destinava de imediato 39% às ações que poderiam ajudar a conter o avanço da pandemia, que chegou até mesmo ao Vale do Javari, santuário ecológico na fronteira com o Peru, onde vivem 16 grupos isolados, uma das regiões com maior diversidade étnica do mundo. Se nada for feito para proteger as aldeias, além de vidas, um patrimônio cultural da humanidade corre o risco de extinção.
“Os anciãos que estão desaparecendo são as bibliotecas vivas de todo este conhecimento tradicional, da língua, dos costumes, das danças, da música. Esse conhecimento se preserva nos mais velhos, e é através deles que chega aos jovens e se reproduz”, lamentou Angel Corbera Mori, professor de linguística na Unicamp e especialista em línguas ameríndias.
O QUE DIZ A FUNAI
A Fundação garante que já investiu cerca de R$ 28 milhões no enfrentamento do novo coronavírus. Entre as medidas, está a entrega de aproximadamente 425 mil cestas de alimentos para mais de 207 mil famílias indígenas. Segundo a assessoria de imprensa da Funai, o intuito é promover a segurança alimentar e viabilizar a permanência dos índios nas comunidades.
Embora os líderes indígenas digam o contrário – e organizações internacionais como Greenpeace também, a Funai ainda assegura que já foram realizadas 184 ações em 128 territórios indígenas para conter invasores, numa parceria entre Exército, Polícia Federal, Batalhões de Polícia Militar Ambiental e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
De acordo com a fundação responsável por cuidar dos povos indígenas, ainda em março, foram suspendidas as autorizações para ingresso em aldeias. Hoje a Funai contribui para a manutenção de 311 barreiras sanitárias. Além disso, entregou mais de 69 mil kits de higiene para reforçar medidas preventivas.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Karla Monteiro
Fotos: Arquivo APIB