Além de todos os enormes desafios que o Rio São Francisco e sua bacia hidrográfica enfrentam historicamente, existe sempre a possibilidade de surpresas que adicionam novas e potenciais dificuldades à dura tarefa de construir nesse curso de águas estratégico para o Brasil uma gestão de recursos hídricos que se mostre sustentável e à altura da diversidade de interesses de uma vastíssima porção do território brasileiro.
A decisão do governo federal de inserir, em colaboração com o governo de Minas Gerais, mais uma barragem hidrelétrica na região a montante da cidade ribeirinha de Pirapora e as incessantes iniciativas para ressuscitar a construção de um complexo nuclear no Sertão de Pernambuco, utilizando águas do Velho Chico à altura do município de Itacuruba, dão mostras que, independentemente das administrações que se sucedem à frente do governo central, a postura das administrações federais é basicamente a mesma, ou seja, a repetição de um modelo de utilização das águas franciscanas que já se mostra totalmente defasado face às novas realidades hidrológicas, climatológicas, econômicas, sociais e ecossistêmicas do grande rio da integração nacional.
Salta aos olhos que o uso hegemônico das águas franciscanas para a geração de energia hidrelétrica já entrou em crise há muito tempo, seja pelo influxo das novas características das vazões declinantes do São Francisco, seja pela entrada em cena de um novo padrão climático que impõe períodos cada vez mais severos de estiagem, seja pela expansão das populações e dos demais usos múltiplos das águas da bacia hidrográfica, só para citar três fatores essenciais que tornam a ideia dessa nova barragem totalmente discutível à luz daquilo que é melhor para o interesse público.
Quanto à ideia de construção do complexo nuclear na região do semiárido é iniciativa que continua cercada de inúmeros fatores de dúvida quanto à sua oportunidade, eficácia, relação custo benefício, qualidade da tecnologia a ser utilizada e sobretudo quanto aos dramáticos aspectos ambientais e de risco embutidos em um tipo de empreendimento que vários países do mundo, com desenvolvimento de ponta, estão pouco a pouco abandonando porque o problema do lixo nuclear gerado e os impactos de um acidente são simplesmente insuportáveis sobretudo para países economicamente vulneráveis como é o caso do Brasil e de sua região Nordeste.
Quanto a esse último aspecto é bom lembrar que o Rio São Francisco não tem “plano B” como estamos cansados de alertar em relação ao desastre nacional que seria o comprometimento das águas do Velho Chico caso haja novos rompimentos de barragens de rejeito de minério capazes de atingi-lo de forma irreversível. Em relação a um acidente nuclear ou até mesmo um vazamento sério de radioatividade a tragédia seria ainda maior visto que o Rio São Francisco, com a contribuição das águas dos seus afluentes, responde pela disponibilidade hídrica do Norte de Minas Gerais, da região semiárida brasileira e por nada menos do que 70% da disponibilidade hídrica de todo o Nordeste brasileiro e sua enorme população.
É de lamentar que tais iniciativas, como é recorrente há décadas, se façam sempre sob a égide de um centralismo prepotente que ignora o grande contencioso de conflito que tais empreendimentos embutem, o que, no mínimo, aconselharia aos responsáveis por tais iniciativas terem o cuidado de ouvir a todos os estados, populações, segmentos de usuários, municípios que serão diretamente afetados por obras e equipamentos dessa natureza.
Se as coisas caminhassem conforme preceitua a Lei Nacional das Águas, ou seja, a Lei 9.433, que estabelece os princípios participativos, de compartilhamento e descentralização na gestão dos recursos hídricos, o encaminhamento de propostas de teor tão polêmico seria bem diferente do que se mostra atualmente. E aí seria possível demonstrar que empreendimentos como os que estamos tratando aqui simplesmente vão na contramão do Pacto das Águas que é preciso construir na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco se quisermos, efetivamente, garantir a segurança hídrica que o Brasil vai precisar no presente século.
Além de geração hidrelétrica é preciso entender que as águas do Velho Chico atendem à irrigação, à indústria, à mineração, à agricultura familiar, à aquicultura, à navegação, à pesca artesanal, ao turismo, à prioridade das prioridades que é a captação de água para abastecimento humano e também à vida aquática tão agredida por décadas de uso predatório. Tudo isso somado às vazões que se destinarão ao Projeto da Transposição indica que a hidrelétrica e a usina nuclear precisam de um amplo, tecnicamente sólido e democrático debate antes que decisões unilaterais, que não olham a bacia como um todo, sejam tomadas à revelia da sociedade.
Anivaldo de Miranda Pinto
Presidente do CBHSF