Por uma agenda nacional de recursos hídricos e o fortalecimento da governança das águas

22/10/2020 - 14:11

Confira a carta aberta ou leia na íntegra no texto abaixo

 

Em função das modificações ocorridas no cenário institucional e político brasileiro, com interface direta à governança hídrica no Brasil, é relevante e essencial promover uma Agenda Nacional dos Recursos Hídricos autônoma.

Os recursos hídricos são essenciais para a qualidade de vida das pessoas, para a economia e para os ecossistemas. Problemas associados a eventos de cheias e secas, poluição de mananciais, escassez hídrica e comprometimento dos serviços ambientais hídricos requerem a construção de políticas públicas e instituições dedicadas ao tema.

Reconhecendo a gravidade dos problemas, a Constituição Federal de 1988 comandou a criação do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos como sistema específico e especializado para tratar deste relevante tema nacional, com o objetivo de promover a segurança hídrica dos usos múltiplos.

Este comando constitucional correto, justo e atual foi materializado por meio da Política Nacional de Recursos Hídricos, definida pela Lei 9.493/1997 (“Lei das Águas”), pela Lei 9.984/2000 que cria a Agência Nacional de Águas e pelo conjunto de Leis Estaduais que definem o arcabouço político, jurídico e institucional que as Unidades da
Federação utilizam para gerir as águas em seus domínios. As organizações técnicas e científicas da sociedade civil tiveram papel relevante na construção dessa Política. As cartas e ação de membros destas instituições apoiaram a elaboração dos marcos legais e têm contribuído na implementação e no funcionamento das instâncias de
participação do Sistema, juntamente com as demais organizações civis.

O Sistema de Recursos Hídricos (política e instituições) possui mecanismos de coordenação com outras políticas públicas e Sistemas Nacionais como é o caso, por exemplo, do Sistema de Energia, do Sistema de Meio Ambiente e do Sistema de Saneamento Básico, tanto em nível federal como nos demais níveis federados. Cada um destes sistemas possui sua política, suas instituições e seus instrumentos de
gestão.

Tais políticas, no âmbito da administração pública federal direta, estão em grande parte atribuídas atualmente ao Ministério do Desenvolvimento Regional que, entre outras políticas, tem por competência a execução da Política Nacional de Recursos Hídricos, a Política Nacional de Segurança Hídrica e a Política Nacional de Saneamento.

A ANA, que desde a aprovação do novo Marco do Saneamento (Lei nº 14.026, de 15 de junho de 2020) se denomina Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, foi inicialmente criada para regular o acesso ao bem público água e coordenar a implementação do Sistema Nacional de Recursos Hídricos, tarefa esta que destinava a
maior parte de seu orçamento institucional.

Ao longo dos 20 anos de existência, a ANA fortaleceu órgãos gestores estaduais de recursos hídricos, fomentou a criação de comitês de bacia hidrográfica, ente de estado de primeira instancia de tomada de decisão hídrica, constituiu um corpo técnico maduro, competente e robusto para o planejamento e gestão de recursos hídricos no
Brasil. A partir de 2010, tornou-se reguladora também de serviços, gestora de informações, coordenadora do Sistema Nacional de Segurança de Barragens e, recentemente, lhe foi atribuída a normatização de referência do setor de saneamento para que se evitem disfunções com consequências que se remetem ao comprometimento da boa qualidade de vida da população brasileira.

O Sistema de Recursos Hídricos vem respondendo de forma satisfatória a alguns de seus desafios, tem feito que a água não seja tão pouca na seca, nem tanto nas cheias e conseguiu alguns avanços quanto a qualidade da água. Contudo, necessita se aprimorar para responder à desafiadora e crescente demanda por Segurança Hídrica
que a sociedade brasileira lhe coloca, sobretudo no cenário de intensificação de secas severas que tem impactado fortemente cidades e economias em todo o país que busca atender o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 6 (ODS 6) para prover agua potável e saneamento para todos, sem deixar ninguém para trás. Este aprimoramento
requer visão estratégica e instituições fortes e capazes tecnicamente nas esferas federativas.

Motivadas pelo compromisso de preservar as conquistas alcançadas, fortalecer e aprimorar continuamente o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, as Associações Técnicas e Científicas, juntamente com outras organizações da sociedade civil, gostariam de reafirmar algumas de suas convicções.

Reconhecemos como conquistas:

• A criação de um Sistema Nacional de Recursos Hídricos que trata de forma especializada a gestão da oferta, da demanda e os conflitos pelo uso da água;
• As instâncias de participação pública na gestão de águas, como espaço de aprofundamento da democracia;
• A gestão de conflitos pelo acesso à água entre usos múltiplos e regiões fundada na negociação política com base técnica entre usos e regiões, única forma de incorporar os múltiplos valores da água na decisão e na construção de pactos e integração social;
• A implementação dos instrumentos de gestão, tais como, os planos de recursos hídricos e o enquadramento (construtores de pactos de longo prazo e visão estratégica dos problemas), a outorga (ferramenta de alocação de água no longo prazo), a cobrança (instrumento promotor de eficiência econômica) e o sistema de informações (rede observacional e de modelos necessários para suporte a tomada de decisão); e
• A descentralização da gestão entre os entes federados como mecanismo de viabilizar a construção de políticas das águas mais aderentes às realidades regionais, em um país continental e com paisagens tão diversas como a
brasileira.

Avaliamos ser necessário avançar em diversos temas como: a gestão das águas na Região Amazônica; a articulação Federal e Estadual com o município; o aprimoramento da política de gestão do risco de secas, principalmente após a construção do monitor de seca; a gestão da qualidade da água em ações como a o Programa de Despoluição de Bacias – Prodes da ANA; o fortalecimento das instâncias de integração de políticas públicas, entre outros.

A ANA passará por modificações profundas para se reconfigurar de modo a cumprir seus novos objetivos institucionais relacionados ao saneamento básico. Para tanto, necessita de novos recursos humanos e materiais para que, ao absorver as estruturas e atividades desta nova agenda, não produza perdas significativas na área de recursos
hídricos. O corpo técnico adicional requerido pela ANA deve incorporar novas especialidades requeridas na regulação do saneamento. Nesse contexto, é fundamental que as lideranças na diretoria da ANA tenham conhecimento substantivo em pelo menos uma das áreas (recursos hídricos ou saneamento) e sejam capazes de identificar as demandas estratégicas de cada um dos setores. Assim como, a compreensão da relevância de promoção de uma Agenda Nacional dos Recursos Hídricos autônoma é essencial.

A expectativa é que os avanços futuros desejados no setor de saneamento básico não comprometam as conquistas já obtidas e os avanços urgentes requeridos na área de recursos hídricos. Espaços de construção de sinergia entre os sistemas e política de Recursos Hídricos e o de Saneamento Básico devem ser identificados e construídos. Estes espaços são diversos e com grande potencial de melhoria na qualidade de vida das pessoas, na promoção do desenvolvimento econômico e na sustentabilidade dos ecossistemas.

As organizações técnicas, científicas e da sociedade civil estão, como sempre estiveram, disponíveis para contribuir na construção do Sistema de Recursos Hídricos e na promoção de uma Agenda Nacional de Recursos Hídricos, e agora também de uma agenda de saneamento básico, com o objetivo de garantir a segurança hídrica das pessoas, das atividades produtivas e dos ecossistemas. Manifestam pela necessidade de alinhamento dos ingressantes à Diretoria Colegiada da ANA com os novos desafios e com a manutenção das conquistas e dos avanços na agenda de recursos hídricos e de governança das águas.

Subscrevem esta Carta Aberta:

Associação Brasileira de Recursos Hídricos – ABRhidro
Associação Brasileira de Águas Subterrâneas – ABAS
Associação Brasileira de Engenharia Ambiental e Sanitária – ABES
Rede Brasileira de Organismos de Bacia – REBOB
Observatório da Governança das Águas – OGA Brasil
Fundação SOS Mata Atlântica
The Nature Conservancy – TNC
Instituto Trata Brasil
Instituto Democracia e Sustentabilidade – IDS
Associação Águas do Nordeste – ANE
Associação Paulista de Geólogos – APG
Instituto Água Sustentável
Federação Brasileira de Geólogos – Febrageo