O novo coronavírus já está presente nos esgotos de ao menos dois estados no país, e esse achado ajudará pesquisadores a entender o tamanho da pandemia, uma vez que os dados oficiais são subnotificados, e o governo não sabe com precisão onde a covid-19 tem maior ou menor presença.
Pesquisa da ANA (Agência Nacional de Águas) em parceria com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e com a Secretaria de Saúde do Estado de Minas detectou a presença do causador da covid-19 nas bacias do Ribeirão Arrudas e no Ribeirão da Onça, que atravessam as cidades de Belo Horizonte e Contagem.
O estudo corrobora outro resultado neste sentido revelado no final de abril, quando a Fiocruz anunciou ter encontrado o vírus em esgotos de Niterói, no Rio de Janeiro.
Além de poder mostrar onde o vírus está presente, as pesquisas auxiliarão o país a entender a dimensão da pandemia e da transmissão. “(…) a expectativa é que este [estudo] também possa contribuir, de forma indireta, para se estimar o número de pessoas infectadas em cada uma das regiões estudadas. Esse componente do estudo é mais desafiador, uma vez que depende da determinação da carga viral contida no esgoto e também da carga viral média de uma pessoa portadora do vírus”, escrevem os pesquisadores do estudo da ANA, que deve durar dez meses.
As cargas virais – quantidade da covid-19 dentro de um determinado organismo – citadas no estudo ainda são incógnitas para os cientistas que pesquisam o coronavírus. Caso o estudo seja bem sucedido, ele poderá ajudar:
- na detecção antecipada da ocorrência do vírus em uma determinada região da cidade, o que poderá, eventualmente, servir de alerta para ações emergenciais
- no acompanhamento da efetividade das ações para barrar a expansão da doença
“Um grande número de pessoas vai ser assintomático, e elas eliminam o vírus pelas fezes. O vírus se acopla bem às células intestinais e vai sendo eliminado. Analisando o esgoto, você consegue saber onde o vírus está mais presente e onde não está. Dá para saber o que vai acontecer, pode funcionar como uma vigilância ambiental, um bom biomarcador do vírus. Em suma, esses estudos podem avaliar o tamanho da pandemia”, diz o diretor do Instituto Oswaldo Cruz, órgão responsável pelo estudo em Niterói, o pesquisador José Paulo Gagliardi Leite.
“Se você detectar antes de ele [coronavírus] começar a levar as pessoas para o hospital, você consegue monitorar a presença em um ambiente anterior aos casos graves”.
Não se sabe se esgoto transmite o coronavírus
Como a covid-19 é uma doença recente, não se sabe até o momento se o vírus presente nos esgotos contamina as células humanas; tampouco há qualquer conclusão no sentido contrário.
Leite explica que o coronavírus possui uma espécie de envelope necessário para contaminar células humanas. Como é sensível a ambientes inóspitos, o vírus perderia esse envelope nos esgotos e, consequentemente, sua capacidade de contaminação.
Artigos científicos, como um publicado pelos pesquisadores Léo Heller, César Mota e Dirceu Greco na Science of The Total Environment reforçam que não há conclusões sobre a transmissão da doença pela água. Os cientistas, no entanto, fizeram um alerta: “Se isso for confirmado, isso pode ter consequências de longo alcance para a saúde pública e para estratégias de controle de pandemia.”
“Isso é uma grande pergunta que ainda não foi respondida. Para comprovar essa contaminação [do vírus presente nos esgotos], precisamos de um conjunto de pesquisas para se pensar como seria essa transmissão fecal-oral. Já existem pesquisas que mostram o vírus viável nas fezes” diz ao UOL Heller, relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o direito à água e ao saneamento.
Ele cita três possibilidades de contaminação partindo do esgoto:
- O coronavírus presente nas fezes contamina a água com que as pessoas têm contato, ou
- O esgoto ou as fezes contaminadas, de alguma maneira, atingem determinada superfície — e o contato com ela pode passar o vírus
- Transmissão por vetores (insetos, por exemplo, hipótese para a qual ainda não há confirmações)
Déficit no saneamento atrapalha pesquisa
A escassez de saneamento básico no Brasil é um problema “secular”, como avaliou Leite, e é um entrave aos pesquisadores que querem analisar os esgotos das cidades.
Sem uma rede adequada, não é possível fazer comparações entre os bairros, por exemplo.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Características Gerais dos Domicílios e dos Moradores 2019, do IBGE, mais de 9 milhões de residências não têm tratamento adequado de esgoto e 12,6% dos 72,395 milhões de domicílios afirmam despejar os dejetos em valas, rios, lagos ou no mar.
A falta de saneamento é vetor de outras doenças, como a hepatite A, e em 2018 houve ao menos 487 mil internações relacionadas à falta de saneamento, conforme reportou a Folha. A situação atual ganha contornos ainda mais preocupantes tendo em vista o colapso do sistema de saúde e o pouco espaço para tratar doenças que não a covid-19.
“Invertendo esse raciocínio, com mais saneamento poderíamos sobrecarregar menos as unidades de saúde e dar mais espaço às pessoas que precisam”, diz Heller.
“Mas nós achamos que a prioridade agora é o fornecimento de água para lavar as mãos, a lavagem é barreira central para evitar o aumento da pandemia. E a prioridade tem de ser para quem está em situação vulnerável, principalmente quem está em situação de rua ou vive nas favelas”.
*Fonte: Uol Notícias