Dois Dedos de Prosa: Anivaldo Miranda, coordenador da CCR Baixo São Francisco

24/05/2022 - 17:25

O Projeto de Lei (PL) no 4.546/2021, que institui a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica no Brasil pegou de surpresa toda a comunidade das águas no Brasil, uma vez que a proposta veio à tona pela imprensa. O PL já foi encaminhado ao Congresso Nacional e aguarda decisão do presidente da Câmara dos Deputados para tramitação.


Entrevistamos Anivaldo de Miranda Pinto, que é membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), coordenador da Câmara Consultiva Regional do Baixo São Francisco e membro titular do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), na qualidade de representante dos Comitês de Bacias Hidrográficas (CBH) interestaduais.


Caso o PL 4546/2021 seja aprovado, quais os principais impactos para a gestão das águas no Brasil?

O PL, se aprovado, representa uma ruptura dos princípios, fundamentos e instrumentos da Lei das Águas do Brasil (9.433/1997). Essa legislação é o resultado de uma longa caminhada participativa dos diversos segmentos da sociedade, do poder público e dos usuários das águas na busca da proteção e do uso sustentável da água.

Embora trate de diferentes aspectos da questão hídrica, um dos seus focos principais está voltado para impulsionamento de obras de infraestrutura hídrica, sobretudo na região Nordeste e nos moldes da cultura que levou aos erros, ainda hoje bastante espinhosos, cometidos no projeto da Transposição do Rio São Francisco, persistindo a visão, agora mundialmente obsoleta, de que a solução para qualquer questão hídrica se encontra apenas na engenharia.

Se fosse assim tão simples não estaríamos vivendo nos últimos anos situações caóticas de crises hidroenergéticas provocadas pela dramática perda de volume de água em colossais reservatórios como no Sudeste do país, algo que resulta claramente da desorganização do regime de chuvas decorrente, dentre outros fatores, da queima criminosa de florestas, desmatamento impiedoso dos nossos biomas e da falta de governança hídrica e ambiental no país. Em resumo: de nada adiantará investir em obras e abandonar a gestão hídrica de qualidade e democrática que o Brasil está precisando.

O PL 4546/2021 trará maior segurança hídrica ao Brasil?

Não. É um projeto obtuso, que ignora, como já pontuei antes, os impactos da emergência climática e trata exclusivamente da infraestrutura e concessão de serviços, sem incorporar uma perspectiva integrada da gestão hídrica com a gestão ambiental. As secas mais prolongadas e severas e a consequente perda de resiliência das bacias hidrográficas brasileiras representam desafios complexos que, além da engenharia, requerem soluções multidisciplinares, participativas e descentralizadas. Insistir na tradição da política fisiológica dos “tocadores de obras” em pleno século do aquecimento global é anacronismo que já não podemos nos dar ao luxo de cometer.

Esse projeto é mais um demonstrativo de que falta uma visão estratégica e um exercício de priorização para que a sociedade e o Estado brasileiros saibam exatamente de qual segurança hídrica estamos falando.

O PL 4546/2021 institui a cessão onerosa de direito de uso dos recursos hídricos. O que isso significa na prática?

A cessão onerosa prevista no PL pretende dar direito àquele que possuir autorização de uso da água bruta (outorga) a comercializar percentuais, ociosos ou não, do total dessa outorga, com terceiros, ou seja, vender o que não lhe pertence visto que a água é bem comum de todo o povo brasileiro. O governo tem defendido que esta será uma forma econômica de otimizar o uso da água em situações de escassez. Nada mais distante da verdade porque no contexto da crise o que vai explodir é a aparição de um mercado altamente especulativo das águas e, em tais condições, como todos sabem, são os monopólios dos mais poderosos os únicos que se dão bem e ainda vão lucrar às custas de um sacrifício ainda maior das populações.

Outro ponto criticado do PL 4546/2021 é que ele retira dos Comitês o direito de aprovar os seus planos de bacias ao submeter essa decisão para instâncias superiores de gestão, que estão mais distantes das realidades locais. Qual sua opinião sobre essa decisão?

A proposta configura claramente o início de uma estratégia insidiosa de enfraquecimento do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, elegendo como alvo principal de seu ataque a base desse Sistema que são os comitês de bacias hidrográficas. Na prática sequestra-se a gestão hídrica do cenário real onde ela de fato acontece, que são os rios e suas bacias hidrográficas, para centralizar ainda mais as decisões no ambiente cartorial da burocracia estatal e dos lobbies em Brasília. Chega a ser surreal!

Qual é o posicionamento do CBHSF em relação ao PL 4546/2021?

O CBHSF é contrário a esse projeto que, por um insanável vício de origem e total incoerência interna, mais se parece um “PL Frankenstein” do que propriamente esse maldosamente apelidado de “Novo Marco Hídrico”. A nossa proposta junto ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) é que retire o PL elaborado entre quatro paredes e que, ao invés do desmonte da Política Nacional das Águas, promova de forma transparente, leal e democrática o seu aperfeiçoamento.

O que se poderia propor no lugar desse PL 4546/2021?

O que nós estamos precisando nesse exato momento é dar prosseguimento ao acúmulo de conhecimentos e experiências corporificados em anos de Política Pública das Águas através da universalização em todo o vasto território brasileiro da implantação dos instrumentos da gestão hídrica (cobrança pelo uso da água bruta, comitês de bacias, enquadramento das águas, sistemas confiáveis de outorga), choque de governança hídrica em todo o país, restauração da política ambiental e de sua integração com a gestão hídrica e coibição plena da devastação das florestas e biomas brasileiros.


Assessoria de Comunicação do CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Luiza Baggio
*Foto: Lula Castello Branco