O direito de acesso à água potável e ao saneamento adequado é essencial para a vida humana digna e é reconhecido como direito de todas as pessoas. Estes direitos devem ser garantidos de maneira universal e segura, especialmente aos grupos em situação de alta vulnerabilidade social. Mas esta não é a realidade do Brasil, que dificilmente cumprirá as metas estabelecidas pelo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 (ODS 6): Água potável e saneamento, como indica a análise do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030 (GTSC A2030), que acaba de lançar o Relatório Luz 2018 sobre o avanço da Agenda 2030 no país.
De acordo com o documento, os dados oficiais de 2016, do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das Cidades, apontam que os índices brasileiros de atendimento de água e esgoto estão estagnados ou pioraram. A evolução do índice de coleta de esgotos está praticamente parada e apresentou uma queda nos últimos 11 anos – de 58,1%, em 2006 para 57% em 2016.
O tratamento de esgoto, embora tenha evoluído nos últimos 18 anos, atingiu, em 2016, o índice de apenas 44,9% em relação ao total gerado no país. Os baixos índices do saneamento no país impactam diretamente a qualidade de vida e a saúde da população, principalmente das 34 milhões de pessoas que não têm acesso à água tratada e das mais de 100 milhões excluídas do serviço de coleta de esgoto em seus domicílios.
A piora no serviço, essencial, de abastecimento de água potável resultou na redução da população atendida de 93,3%, em 1995, para 83,3%, em 2016. O levantamento mostra também grande diferença regional em termos de acesso, com atendimento melhor no Sudeste e pior no Norte do País.
“O estado brasileiro tem historicamente se omitido de sua responsabilidade indelegável no saneamento. O estudo aponta que há um investimento cada vez menor no setor, mesmo retirando largas quantias via tributos. Portanto, apesar da meta dos ODS de universalização do saneamento até 2030 estar alinhada à meta do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), o cenário é de desafios.”
Relatório Luz 2018
O documento mostra que, segundo projeções da Confederação Nacional da Indústria (CNI) de 2017, mantido o nível de investimento atual, somente em 2054 alcançaremos o acesso universal. Preocupa ainda que o Estado brasileiro trabalhe com o conceito de “áreas atendíveis”, especialmente nos planos municipais de saneamento e na contratação de prestação do serviço, fazendo com que áreas afastadas, zonas rurais, assentamentos precários, ocupações irregulares e favelas sequer sejam consideradas no longínquo horizonte de universalização.
O Relatório Luz analisou também o Atlas do Esgoto (2017), elaborado pela Agência Nacional das Águas (ANA), que informa que mais de 110 mil km de rios estão poluídos por terem contato direto com esgotos. O documento critica as agências reguladoras do serviço de saneamento, no geral, que pouco colaboram para a melhoria da qualidade das águas, já que os instrumentos normativos e econômicos não induzem as empresas de saneamento a investir em coleta e tratamento de esgoto, mas sim a sempre buscar novas fontes de água. Tal situação reflete a deturpação no Brasil sobre o conceito de segurança hídrica, divulgado pelas autoridades como a necessidade de se aumentar a oferta de água.
O Relatório Luz 2018 aponta a necessidade de aprimorar a outorga de direito de uso de recursos hídricos. Segundo o documento, o instrumento pouco versa sobre ações para melhorar ou preservar a qualidade das águas e são poucas e incipientes as iniciativas decorrentes de políticas públicas para fomentar o reuso de águas residuárias como parte de estratégia e instrumentos de saneamento ambiental e gestão sustentável de águas.
Sobre a eficiência no uso da água, ainda há muito o que se fazer. Poucas ações foram implementadas, como por exemplo o premiado Programa Cisternas do Governo Federal, atualmente sob ameaça. Uma demanda importante é fortalecer a governança e o monitoramento da Política Nacional de Irrigação (o setor é o principal usuário de água no país), incluindo instrumentos de indução às novas tecnologias que permitam o uso racional, como por exemplo o gotejamento.
O Relatório Luz 2018 revela que o importante papel dos ecossistemas no ciclo da água ainda é, em geral, menosprezado no Brasil. Alerta que a escassez hídrica sem precedentes que atinge o país não se deve apenas a eventos extremos ou variações de curto prazo em torno de uma média supostamente constante, mas também ao desmatamento para plantar pastagens e monoculturas no norte e centro do Brasil. O documento alerta sobre a importância em preservar a vegetação existente e restaurar ecossistemas a fim de proteger as águas do país.
De acordo com o documento, é importante garantir a permanência das estruturas e da legislação ambiental favoráveis à proteção desses ecossistemas, muitas das quais estiveram e seguem em risco no contexto político atual, como é o caso dos projetos de lei que visam alterar os procedimentos do licenciamento ambiental, com o intuito de torná-los mais flexíveis, o que seria uma potencial ameaça aos ecossistemas.
Outro ponto analisado pelo documento aponta que são diversas as comunidades, em especial aquelas em situação de vulnerabilidade social, que não têm acesso aos mecanismos de participação social e de acesso à informação seja por falta de recursos próprios materiais ou por ineficiência do governo em garantir esses direitos. O acompanhamento da sociedade civil identifica exemplos de obras que iniciam a consulta prévia às comunidades tradicionais que serão afetadas por estes projetos – situações nas quais são comuns a escassez de água ou a ausência de saneamento. Todavia não há dados sistematizados sobre os mecanismos de participação e consulta que estão sendo aplicados nem quantas são as comunidades beneficiadas por eles. Igualmente, não há dados sistematizados sobre a representação dessas comunidades em comitês de Bacia e noutros fóruns decisórios pelo País.
Recomendações
1. Garantir a participação social efetiva em todos os níveis de tomada de decisão sobre recursos hídricos e saneamento, com atenção à inclusão de comunidades tradicionais ou em vulnerabilidade social, estabelecendo e implementado estratégia para a universalizar o acesso à água e aos serviços de saneamento.
2. Garantir a transparência em todas as instâncias da gestão pública dos recursos hídricos e saneamento, incluindo nos comitês de Bacias, órgãos estaduais e empresas com outorga de serviços.
3. Preservar a vegetação existente e restaurar ecossistemas a fim de proteger as águas do País. Nesse sentido, manter e aprimorar os mecanismos de proteção a ecossistemas e impedir os retrocessos em matéria ambiental que tramitam no Legislativo brasileiro (como a proposta de “flexibilização” do licenciamento ambiental e do uso de agrotóxicos).
4. Incorporar o direito ao saneamento básico no artigo 5º da Constituição Federal.
5. Promover estratégia nacional para o reuso e uso racional da água em todos os setores, agrícola, industrial, comercial, de serviços e residencial.
6. Incorporar a água e saneamento na NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) do Brasil.
Relatório Luz 2018 – O lançamento do Relatório Luz 2018 ocorreu no dia 11 de julho, em Brasília e em primeira mão no Brasil. O documento foi apresentado no Fórum Político de Alto Nível da ONU – encontro da instância responsável por acompanhar os avanços da Agenda 2030, realizado entre 9 e 19 de julho em Nova Iorque, com a participação dos Estados Membros da ONU e de representantes da sociedade civil.
O GTSC A2030, uma coalizão formada por entidades de todas as regiões do Brasil, analisou 121 das 169 metas que compõem os 17 ODS. Assim, no Relatório Luz 2018 todos os 17 ODS foram analisados e contam com um diagnóstico, além de recomendações para reverter a atual situação e alcançar a meta até o ano de 2030. O documento foi preparado por especialistas do GTSC A2030 nas diferentes áreas e por apontar um caminho de como alcançar as metas é chamado de Relatório Luz.
*Texto: Iara Vidal