Aos 24 anos, reconhecido nacionalmente, o chefe nordestino Timóteo Domingos aposta na “Gastrotinga”, junção de alta gastronomia e Caatinga, como arma para a preservação do bioma do Sertão
Coxinha de cacto, pizza de palma, bolo de casca de abóbora, doce de folha de umbuzeiro. Com ingredientes inusitados, Timóteo Domingos, conhecido como o “Rei do Cacto”, vem inscrevendo o seu nome na alta gastronomia nacional usando e abusando da criatividade. Há quase dez anos, ele inventou a Gastrotinga, que junta em receitas deliciosas a boa culinária e a Caatinga.
A história de Timóteo é tão surpreendente quanto os pratos que ele faz. Hoje contando 24 anos, começou a cozinhar ainda criança. Adolescente, já tinha se tornado um chefe de cozinha. Na ânsia de inovar e, ao mesmo tempo, preservar as raízes, o nordestino de Maravilhas (AL) foi buscar inspiração nas plantas do Semiárido. Seu objetivo era um só: proporcionar uma experiência única ao redor da mesa.
“Meu primeiro contato com a cozinha foi ajudando a minha avó. Com seis anos comecei a ajudá-la a preparar broas, cocadas, bolos, buchadas, entre outras receitas tradicionais em nossa região”, contou Timóteo.
Labutando na lavoura, ao lado de todos da família, aprendeu a conhecer as plantas que anos mais tarde seriam usadas como principal insumo para suas criações culinárias. Ainda menino sua função na roça era picar palma para dar às vacas e cabras. “Por que não comíamos aquele ingrediente, já que plantávamos em abundância? Eu me perguntava. Foi quando decidi provar e gostei”.
Quando a família se mudou para Canindé do São Francisco, no sertão de Sergipe, ele, então, começou a ensaiar receitas, inventar moda. O município sergipano é margeado pelo São Francisco e faz parte do chamado polígono das secas. Lá, o dinheiro era curto: “Não tinha dinheiro para comprar ingredientes difíceis de encontrar na roça, como leite condensado, por exemplo. Na época vendia cocada na porta da escola”, contou: “Aí fui criando alternativas”.
Um dia faltou coco suficiente. Decidiu colocar xique-xique, uma espécie de cacto, na velha receita de cocada. “Ralei e misturei. As pessoas não perceberam e até acharam que o doce ficou mais cremoso, mais molhado”, lembrou. O sucesso do “cocactus” acabou por aniquilar a cocada convencional. “Não tinha avisado a ninguém sobre o ingrediente e as pessoas só ficaram sabendo que usava xique-xique em 2014, quando fui ao programa da Ana Maria Braga, na Rede Globo”.
O “cocactus”, na verdade, foi uma mudança de paradigma. “Muitos acreditavam que a palma e os cactos eram comidas de animal”, comentou Timóteo. Com a aceitação da novidade, ele logo partiu para novas experimentações, como o brigadeiro de casca de melancia. Com o sucesso das receitas decidiu ir para Maceió estudar gastronomia. Depois, em Aracaju (SE), chegou a trabalhar na cozinha de um grande restaurante. Aos 19 anos, porém, decidiu voltar para a sua Canindé de São Francisco.
Timóteo Domingos, o Rei do Cacto
Além da gastronomia
Segundo Timóteo, o termo Gastrotinga é uma tentativa de sintetizar um conceito. Mais do que fonte para as receitas, os cactos e demais plantas da Caatinga nordestina servem de inspiração. Ele, de fato, acredita na diversidade do bioma como uma alternativa para acabar com a fome no sertão. “São plantas extremamente nutritivas e muitas pessoas tinham e ainda têm um preconceito grande, porque elas normalmente são dadas como alimento para os animais. Mas é na persistência que a gente chega aos nossos objetivos, como os próprios cactos, que florescem na seca”, comparou.
A Gastrotinga leva em conta as raízes culturais: “O conceito surgiu quando eu tinha 15 anos. É uma nova ideologia que pretende mostrar o bioma Caatinga como base alimentar. A Gastrotinga busca conscientizar as pessoas sobre a conservação da floresta e de alguma forma contribui para a preservação. E temos todos os recursos para isso. Basta saber como utilizar cada espécie da fauna e da flora de forma sustentável e equilibrada”.
Para Timóteo Domingos o fato de usar insumos da Caatinga na alimentação já é uma influência para a preservação: “A partir do momento em que as pessoas passam a usar e gerar renda com um produto nativo, começam a entender que precisam preservar porque terão retorno financeiro”. Na sua opinião, a melhor forma de se conseguir preservar é dar valor comercial às plantas nativas. Mas, claro, de maneira consciente e de forma organizada. “Eu não posso proibir o sertanejo de desmatar para fazer carvão se ele precisa do dinheiro para sustentar a família. Eu posso dar alternativa para que ele deixe aquela madeira em pé e gere renda a partir dali”, afirmou.
Palma, mandacaru, facheiro, xique-xique, quipá rasteiro, urtiga, aroeira da caatinga, macambira, croá, flor da catingueira são algumas das espécies da Caatinga usadas na Gastrotinga. O Rei do Cactos já criou sua gastronomia, escreveu dois livros – Reinventando o Sertão (2018) e Subsistência – A Natureza, o Alimento e a Seca (2019) – circulou pelas TVs nacionais, é tema de documentário. Para o futuro pretende criar uma escola de gastronomia em Canindé de São Francisco, além de produzir um programa de televisão baseado no Rio São Francisco para mudar a visão de que no sertão só tem miséria, fome e seca.
“Quero que o mundo conheça o bioma Caatinga, sua biodiversidade alimentar e o povo que vive nesta região. E que todos conheçam o sertão não apenas como um lugar seco, onde as pessoas passam fome e sede. Quero que vejam o potencial nutritivo dos ingredientes, o sabor e a riqueza imensurável que é o nosso povo”, finalizou.
Buchada de Bode
INGREDIENTES
– Vísceras de 1 bode novo (bucho, tripas, fígado, pulmão, coração, passarinha e língua)
– 2 cebolas
– 2 pimentões
– 2 tomates
– 2 colheres (sopa) de cominho
– 1⁄2 maço de coentro
– 2 colheres (chá) de pimenta-do-reino
– 2 colheres (sopa) de colorau
– 3 pimentas-de-cheiro
– Azeite
– Sal a gosto
– 10 dentes de alho
– 1⁄2 maço de cebolinha
– Agulha e linha (para costurar ostravesseirinhos de bucho)
PREPARO
Lave bem todas as vísceras e, se necessário, deixe-as imersas por algumas horas em suco de limão com água morna. Pique os miúdos (tripas, fígado, pulmão, coração, passarinha e língua) em cubinhos e reserve-os em uma bacia.
Corte as cebolas e coloque metade na bacia com os miúdos e a outra metade em outro recipiente.
Faça o mesmo com os pimentões, os tomates, o alho, o coentro e a cebolinha. Corte e coloque metade com os miúdos e a outra metade no recipiente com a cebola e reserve.
Adicione aos miúdos o colorau, a pimenta-do-reino, cominho, sal a gosto e misture bem. Reserve.
Corte o bucho em seis pequenos pedaços para formar pequenos travesseirinhos. Costure todas as laterais com a agulha e a linha, deixando apenas um lado aberto, por onde deve preencher com os miúdos temperados até a borda.
Costure a parte aberta para que o recheio não vaze.
No fundo de uma panela, arrume os travesseirinhos de bucho.
Adicione o restante do colorau, do cominho, da pimenta-do-reino, sal a gosto e a reserva preparada de tomate, pimentão, cebola, coentro, cebolinha e alho.
Em seguida, na panela que contém a buchada, regue com azeite e adicione água em temperatura ambiente até cobrir por completo os travesseirinhos.
Deixe cozinhar por 3 horas em fogo baixo.
O caldo pode ser usado para preparar um pirão.
Sirva em seguida.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Luiza Baggio
Fotos: Érica Fernandes e Rui Nagae