Em prosa e verso, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade dedicou-se, ao longo da vida, a combater com palavras o efeito devastador da mineração em sua cidade natal, Itabira (MG). Lançado ano passado, o livro “Maquinação do Mundo”, do ensaísta José Miguel Wisnik, esmiuça com maestria esta relação.
“Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói”, diz o poema “Confidência do Itabirano”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Quem chega à Itabira, a 110 quilômetros de Belo Horizonte, experimenta, logo à primeira vista, a profundidade literal do verso do poeta. Difícil saber se a mina fica dentro da cidade ou se a cidade fica dentro da mina. Envolvendo-a, a serra do Pico do Cauê, carcomida, esburacada, profanada. Não existe vista em Itabira que não seja para devastação. Aliás, o Pico do Cauê não existe mais. Outrora representara a bússola dos bandeirantes, com o brilho azulado pela concentração de minério e ouro. Hoje é uma cava que conta a história da mineração no estado. Fora em Itabira onde tudo começou.
A funda relação da poesia de Carlos Drummond com os impactos da mineração em sua cidade natal está no livro “Maquinação do Mundo – Drummond e a Mineração”, do crítico e ensaísta José Miguel Wisnik, publicado pela Companhia das Letras, em meados de 2018.
Quatro anos antes, em 2014, Wisnik, um dos mais importantes intelectuais do país, iniciara a longa pesquisa, instigada por seu próprio espanto ao por os olhos em Itabira. Chegara à cidade mineira para participar de um evento literário, “Inverno Cultural”. “A minha sensação imediata foi a de que a ‘máquina do mundo’ do poema famoso estava ali, não somente como entidade poética e metafísica, que também é, mas como um acontecimento histórico
que se deu surdamente em câmera lenta ao longo do século 20, quando Itabira esteve no epicentro oculto da mineração brasileira”, disse o autor em entrevista ao jornal Folha de São Paulo.
Assim como Drummond a Companhia Vale do Rio Doce, que após a privatização, em 1997, passara a se chamar apenas Vale, nasceu em Itabira, em 1942. O trajeto da mineração na cidade, porém, tivera início três décadas antes, em 1910, quando uma companhia inglesa, a Brazilian Hematite Syndicate, adquiriu ali a maior jazida de ferro do país: 76 milhões e oitocentos mil metros quadrados. Para explorar tamanho tesouro, surgira, no ano seguinte, em 1911, a Itabira Iron Co – e com ela um personagem que marcaria a trajetória da exploração mineral no Brasil: Percival Farquhar. O legendário empresário norte-americano traçou o plano de exportar 10 milhões de toneladas de minério de ferro por ano para os Estados Unidos. O projeto nunca se concretizaria. Em 1942, o presidente Getúlio Vargas nacionalizou a jazida e criou a estatal Companhia Vale do Rio Doce.
Drummond contava, então, 40 anos, e vivia no Rio de Janeiro. O Pico do Cauê havia sido personagem do poema “Itabira”, sua estreia editorial, com o livro “Alguma Poesia”, em 1930: “Cada um de nós tem o seu pedaço no Pico do Cauê (…)”, dizia o verso. Já então o poeta olhava desconfiado para aquele frenesi de progresso, imortalizando em verso um comerciante da cidade, dono do armazém: “Na cidade toda de ferro, as ferraduras batem como sinos. Os meninos seguem para a escola. Os homens olham para o chão. Os ingleses compram a mina. Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”.
Nos anos que se seguiram à estreia da hoje Vale, Drummond travou uma guerra de palavras, recusando-se a engolir calado a sabida “derrota incomparável” de Tutu Caramujo. Usando a sua coluna no jornal Correio da Manhã, o mais importante da imprensa da época, denunciou texto após texto a devastação em curso. Nas crônicas, segundo Wisnick, cobrava “instalação de siderurgia, participação dos empregados nos ganhos da empresa, critérios mais justos de participação municipal no preço do ferro e reversão do excedente em benefício da região”. Chegara a acusar
sem subterfúgios: “indústria ladra”. Em novembro de 1970, a Vale, na arrogância do capital, revidou, estampando no O Globo uma peça publicitária usando um famoso verso do próprio poeta para atacá-lo: “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
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*Texto: Karla Monteiro
*Foto: Acervo da família Drummond