Revista Chico nº 9: “Combinado não sai caro”

10/09/2021 - 11:57

Engenheiro civil, doutor em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o mineiro Leonardo Mitre está capitaneando um dos projetos mais importantes para a saúde do Velho Chico: o Pacto das Águas. Mesmo enfrentando longos períodos de seca, degradação ambiental e consequente escassez hídrica, o Rio São Francisco segue sendo fonte de vida para múltiplos atores. Regulamentar a partilha justa de suas águas nunca foi tão urgente. Iniciativa do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), o Pacto das Águas é exatamente o que o nome indica, um pacto firmado, com a finalidade de evitar conflitos futuros. A CHICO entrevistou Mitre para falar sobre a sua missão.

 

Qual será o principal resultado do Pacto das Águas? O Pacto é o instrumento político e institucional capaz de garantir que o Plano Diretor de Recursos Hídricos da BHSF saia do papel?A ideia é de o Pacto das Águas motivar os atores da política de recursos hídricos da bacia a atuarem de uma forma mais articulada e integrada. Assim será possível que todas as ações, não só as que estão previstas no Plano de Recursos Hídricos, como também as relacionadas à gestão necessárias de serem implementadas na bacia, para que assim sejam feitas e de uma forma mais harmônica entre as diferentes unidades da federação.Vai ser fácil colocar governadores, o Comitê e o governo federal em torno de uma mesa para firmar acordos estratégicos para a gestão das águas do São Francisco?

Esse é um ponto interessante e fundamental para que o Pacto das Águas dê certo! Os políticos com poder de tomada de decisão devem se envolver com o Pacto das Águas da bacia do São Francisco. Será uma situação difícil, pois vai envolver o Distrito Federal mais todas as unidades da federação da bacia (Minas Gerais, Bahia, Goiás, Pernambuco, Alagoas e Sergipe), mais os estados que recebem as águas da transposição (Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte). Além da dificuldade de conciliar agendas, esses atores terão que articular e pactuar seus diferentes interesses para chegar em um objetivo comum, que é ter disponibilidade de água para todos.

Por onde o Pacto das Águas deve começar?

O Pacto das Águas da bacia do São Francisco inicia pela definição do primeiro tema para discussão e pactuação. Considerando que deverão ser celebrados acordos para cada tema específico, é fundamental definir um primeiro tema para a discussão e que seja possível integrar os interesses dos atores da bacia com vistas a atingir um objetivo comum. Ao escolher o tema de início é fundamental que todos estejam de acordo com as ações e os compromissos a serem assumidos, pois não se trata apenas de estabelecer vazões alocadas e de entrega, mas sim de compromissos de ações conjuntas e em prol da bacia. Deve ser encarado como um processo, com etapas a serem seguidas antes de sua assinatura e com ferramentas de monitoramento e de revisão ao longo do tempo.

No debate da Plenária que aprovou a Resolução que institui a ideia do Pacto das Águas, o ponto mais polêmico referia-se às chamadas “vazões de entrega” dos rios afluentes à calha central. Há razão para se temer a implantação dessas vazões?

Eu não vejo razão para temor! Quem vê a “vazão de entrega” como polêmica tem a ideia de que ela pode restringir os usos em determinados estados ou bacias. Mas eu vejo exatamente pelo lado contrário, pois a partir do momento em que são definidas alocações de vazões para uma determinada bacia ou sub-bacia e são estabelecidas as vazões que vão continuar escoando para jusante, os usuários daquela área terão maior segurança hídrica para captar suas vazões. Então, na verdade, ao determinar a alocação de água e uma “vazão de entrega” aumenta-se a garantia de disponibilidade para os usos daquela bacia. Ao invés de restringir, na verdade o que está sendo feito é aumentar a segurança e garantia para os que ali estão.

Para haver Pacto é preciso estabelecer uma base comum mínima em relação aos instrumentos de gestão da água no território da BHSF. Como o senhor avalia o estado da arte dessa gestão nos estados ribeirinhos?

A bacia do São Francisco tem diferentes níveis de gestão e de implementação dos instrumentos definidos na Lei das Águas e são utilizadas diferentes fontes de informações. Por exemplo, ao longo da bacia são consideradas diferentes bases de dados, diferentes critérios para a outorga e cobrança pelo uso da água, entre outras situações. O que temos hoje é uma disparidade na forma de implementação dos instrumentos de gestão. Assim, um dos pontos do Pacto é harmonizar a implementação desses instrumentos.

Em quais bacias hidrográficas do mundo essa ideia de Pacto prosperou?

Para contextualizar a proposta de modelo para o Pacto, foram analisados outros pactos já existentes, como o Acordo do Rio Mekong, o Tratado de Ganges, Pacto do Rio Colorado, Pacto das Águas do Ceará e Pacto Nacional pela Gestão das Águas, além das propostas de Pactos da Bacia do Rio São Francisco nos planos decenais de 2004-2013 e 2016-2025.
Vale destacar o Pacto do Rio Colorado, que é considerado o rio mais litigado do mundo, com batalhas judiciais sobre a repartição de suas águas que duram décadas. É o que mais se aproxima da situação do São Francisco, com um acordo entre diferentes unidades da federação, assinado em 1922, sendo o primeiro de maior relevância e encontra-se em funcionamento até os dias de hoje. As águas do Colorado são divididas entre sete estados norte-americanos e o México onde se localiza a sua foz. Grandes cidades como Los Angeles, Las Vegas e Phoenix, vários projetos de irrigação e algumas usinas hidroelétricas dependem dessas águas.

Com o agravamento da crise hídrica no Brasil voltam a aumentar as tensões decorrentes dos usos múltiplos das águas do São Francisco, sobretudo entre geração hidroelétrica e demais segmentos usuários da BHSF, entre eles a vida aquática. Como se antecipar para que as tensões não virem conflitos?

A partir do momento em que se tem critérios do uso da água acordados entre os diferentes setores e estados, tem-se naturalmente uma minimização das tensões. É aquele velho ditado: “o que é combinado não sai caro”. Vejo a questão dos acordos de uso da água em que um processo de alocação de água adequado poderá evitar conflitos. Por exemplo: o cumprimento de metas de vazões de entrega dos principais afluentes ao Rio São Francisco irá dar maior garantia de segurança hídrica para todos os usos de água na bacia. Dessa forma, irá incrementar a segurança hídrica e minimizar o risco de desabastecimento das demandas existentes.

A recorrência preocupante de baixos volumes nos reservatórios das regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste é um reflexo da queima de florestas no Brasil?

Essa é uma questão difícil de responder, pois se tem que avaliar cada situação. No caso da bacia do São Francisco cada reservatório é uma situação diferente. Não dá para fazer uma avaliação de forma genérica. É preciso analisar uma série de fatores que influenciam no balanço hídrico e na sazonalidade das vazões de uma bacia.

Prosseguindo esse novo padrão hidrológico, é o momento de uma reavaliação do Sistema Interligado Nacional (SIN)?

Vejo o SIN como algo muito positivo. A grande característica do Sistema é poder gerir os reservatórios e o sistema elétrico nacional em função da sazonalidade dos períodos chuvosos no Brasil. Assim, o SIN possibilita que a energia elétrica percorra o Brasil de Norte a Sul, Leste a Oeste, otimizando o aproveitamento energético das hidrelétricas. Nessa imensa malha, formada pelas redes de transmissão e de distribuição de energia elétrica, estão conectadas as usinas de geração de energia e os consumidores. O SIN divide-se em quatro subsistemas: Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Nordeste e Norte.
As atividades de coordenação e controle da operação da geração e da transmissão de energia elétrica no SIN são executadas pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), que segue regras estabelecidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), as quais têm por objetivo combinar o menor custo e as melhores condições de segurança de abastecimento para todos os consumidores.

 


Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Entrevista: Luiza Baggio
Foto: Bianca Aun