Revista Chico nº 9: Realismo fantástico

15/10/2021 - 18:59

Um nasceu no sertão de Sergipe, na bacia do São Francisco, o outro, à beira do Velho Chico, em Alagoas. E ambos são hoje artistas reconhecidos pelos mercados de arte nacional e internacional: Cícero Alves dos Santos, o Véio, e Fernando Rodrigues do Santos, o Fernando da Ilha do Ferro, que ganha, em 2021, sua primeira exposição individual, na Galeria Estação, em São Paulo. Segundo Vilma Eid, diretora da galeria que também representa o trabalho do Véio, os dois têm em comum a madeira farta, o talento de autodidatas e o fato de partirem do tronco para darem forma à figura


Olhar diferente (Véio, 2014)

O Véio

Quando menino, Cícero Alves dos Santos, nascido no município de Nossa Senhora da Glória, no sertão de Sergipe, ganhou dos colegas o apelido de Véio, por gostar de ouvir a conversa dos mais velhos. Hoje, aos 70 anos, ele se tornou um artista consagrado e, na sua arte, incorporou, justamente, os casos que lhe renderam o apelido. O fascínio pelas lendas da cultura sertaneja compõe a base do seu trabalho, um imaginário fantástico recriado em madeira. No município vizinho de Feira Nova, no Sítio Soarte, criou o Museu do Sertão, reunindo um acervo de 17 mil obras que recontam os modos de vida do sertanejo.

Obra sem título (Véio, 2012)

“Gostava de ouvir as histórias deles sobre lobisomem e coisas do tipo”, rememorou Véio. Segundo ele conta, ainda na infância, pegou gosto pela escultura. No começo, usava cera de abelha. Mas, como o material era associado às mulheres, fazia tudo escondido e desmanchava para que ninguém descobrisse o seu segredo. Depois, descobriu a madeira e passou a fazer esculturas grandes, seres estranhos, que lhe renderam outro apelido: “O povo me chama de louco. Não faço o meu trabalho para agradar ninguém, faço para mim, e, se eu gostar, já fico satisfeito”.

Na galeria do Itaú Cultural, em março de 2018, Véio surpreendeu São Paulo – e os críticos de arte – com esculturas de seres com cabeças grandes, outros com formas alongadas, peças que pareciam brotar de um sertão fantástico: “Não sou de copiar, como papagaio”. Graças ao impulso criativo, ele muito cedo largou o trabalho na roça para se dedicar somente ao que o move: esculpir. Orgulha-se de pouco ter trabalhado para os outros. E jamais vendeu uma peça a um comprador que não a valorizasse.

O calango preto (Véio, 2014)

Seu Fernando

No início dos anos 80, o fotógrafo Celso Brandão e a museóloga Carmem Lúcia Dantas faziam uma visita ao povoado de Ilha do Ferro, no município de Pão de Açúcar, em Alagoas, quando notaram, num bar local, bancos de madeira esculpidos em peças maciças, diretamente escavados em trocos. Não eram peças convencionais, lembravam as esculturas de Constantin Brancusi, o mais célebre escultor romeno e um dos principais nomes da vanguarda moderna. Curiosa, a dupla de forasteiros foi perguntar o nome do santo: “Seu Fernando”, informou o dono do bar. Da descoberta em diante, Fernando Rodrigues dos Santos, o Seu Fernando, nascido em 1928 e morto em 2009, ganhou o mundo.

“Minha arte tem uma inteligência que só os artistas da natureza podem compreender”, ele costumava dizer. Analfabeto, Seu Fernando começou a esculpir ainda jovem. Trabalhando em lavouras de milho e feijão, gastava o pouco tempo livre produzindo pequenos objetos de madeira na oficina do pai, o sapateiro do povoado. Aos 40 anos, fez a primeira grande peça: uma espreguiçadeira. E, só nos anos 80, quando foi, enfim, descoberto, passou a exibir, em salões de decoração e exposições de design, a sua obra. Na inauguração do Museu Niemeyer, em Curitiba, dividiu o salão com os Irmãos Campana. Exaustivamente copiadas hoje, suas mesas, cadeiras e bancos aproveitam as formas originais dos troncos e raízes de árvores.

A arte de Seu Fernando está intrinsecamente ligada ao São Francisco. A Ilha do Ferro, onde ele nasceu, apesar do nome, não é uma ilha, mas um povoado situado à beira da margem esquerda do Velho Chico. Com pouco mais de 450 habitantes, o lugarejo sempre conservou a forte tradição do bordado e da escultura em madeira. Desde muito jovem, Seu Fernando ia pescar e voltava para casa carregando “tocos de pau” e esculpia tanto peças de mobiliário quanto esculturas de bichos que povoavam o imaginário dos ribeirinhos. Muitas vezes as madeiras eram trazidas pelo próprio rio, que, nas grandes enchentes, ofertava-lhe troncos de umbuzeiros e mulungus.

Exposição Fernado Ilha de Ferro na Galeria Estação, em São Paulo

 


Baixe aqui o catálogo das peças expostas na Galeria Estação, em 2021


Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Karla Monteiro
Fotos: Arquivo Galeria Estação (João Liberato, Germana Mont-Mor e Giselli Gumiero)