Para produzir uma única calça jeans desde o plantio do algodão até o consumidor final são necessários mais de cinco mil litros de água. É o que revela o projeto Pegada Hídrica, que utiliza a metodologia global Water Footprint Network.
O cálculo é baseado em três indicadores: a Pegada Verde, que envolve o volume da água da chuva utilizada pelas plantas nos processos agrícolas da cadeia produtiva; a Pegada Azul, relativa ao consumo vindo das fontes de água doce, das superfícies subterrâneas e que não são devolvidos para as mesmas fontes de captação; e a Pegada Cinza, referente ao volume de água necessário para a natureza assimilar o efluente devolvido ao meio ambiente. De acordo com o levantamento, o volume total consumido por uma calça jeans corresponde a 41% água verde, 11% água azul e 48% água cinza.
Essa métrica de uma única peça, o icônico jeans tão comum no guarda-roupa de brasileiros e brasileiras de todas as classes sociais, revela o impacto da indústria da moda, em especial do segmento têxtil, de confecção e vestuário, na vida das águas. Inclusive do rio São Francisco, que nasce na região da Serra da Canastra, em Minas Gerais, e deságua no Oceano Atlântico, em Alagoas. O vale do Velho Chico estende-se por Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Goiás e Distrito Federal. A área total de sua bacia é de 619.543,94 km, onde se distribuem 505 municípios com uma população total de mais de 18 milhões de habitantes. O rio da Integração Nacional abriga importantes polos produtores da indústria da moda, a exemplo de Pirapora (MG), no Alto São Francisco, e Petrolina (PE), no Submédio.
O município mineiro de Pirapora, localizado a 350 km da capital, Belo Horizonte, e a 355 km da nascente do rio São Francisco, tem entre as atividades motrizes a indústria têxtil e de confecção e vestuário, que conta com mais de 150 empresas (Empresas do Brasil, 2019). A tradição piraporense na produção têxtil começou em 1894, quando Joaquim Lúcio Cardoso chegou ao então povoado de São Gonçalo de Pirapora (formado por uma população ribeirinha de pescadores) e instalou armazéns para compra de algodão e venda de tecidos de fábricas locais.
Segunda maior cidade do interior de Pernambuco, Petrolina está a 712 km da capital Recife. Com população estimada em mais de 340 mil habitantes, é o quinto maior município pernambucano. A indústria têxtil, de confecção e vestuário da cidade conta com cerca de 300 empresas (Empresas do Brasil, 2019). Chamada de “Passagem de Juazeiro”, Petrolina era caminho para a vizinha cidade de Juazeiro, na margem oposta do rio São Francisco, na Bahia. A passagem servia como ponto de apoio do desenvolvimento da zona sertaneja do Estado, com vias de acesso para Piauí, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.
A moda é uma força geradora de emprego e renda e o Brasil é um importante ator global e detém a última cadeia produtiva completa desse setor no Ocidente, do cultivo das fibras ao descarte dos resíduos têxteis. A indústria nacional de moda é o segundo mercado empregador brasileiro, o quarto no setor de confecções do mundo e o quinto do mundo entre os produtores têxteis. Por ano, o País produz 94 bilhões de peças, confeccionadas pelas 32 mil empresas no setor têxtil e de confecções instaladas, que geram 1,5 milhão de empregos diretos e 8 milhões de empregos indiretos. A força de trabalho tem 75% de mulheres.
Embora seja essa potência geradora de emprego e renda, a indústria da moda também produz impactos ambientais e ameaça os recursos hídricos planeta afora. No caso do Velho Chico, em 2011, por exemplo, duas pesquisas desenvolvidas pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na bacia do rio São Francisco mostraram como a natureza pode sofrer por anos a fio com impacto ambiental e como os riscos à saúde humana por causa da poluição podem persistir no tempo.
Os estudos revelaram que as águas do rio São Francisco em Três Marias (MG), a cerca de 250 quilômetros de Belo Horizonte, estavam fortemente contaminadas por metais pesados (como zinco, cádmio e cromo), lançados pela metalúrgica da extinta Companhia Mineira de Metais (CMM) a partir de 1969, quando teve início a produção de zinco eletrolítico (utilizado para revestir peças de ferro e evitar ferrugem). Outro passivo ambiental, em menor grau que Três Marias, foi verificado em Pirapora, por causa da atividade metalúrgica e da indústria têxtil local.
Há pouco mais de um ano, em agosto de 2018, uma empresa de fabricação têxtil de Petrolina foi multada pela Agência Municipal do Meio Ambiente (AMMA). A indústria estava despejando resíduos químicos sem tratamento em um canal que tinha como destino o rio São Francisco. A multa aplicada foi de R$ 16 milhões. O resíduo era despejado através de uma tubulação de concreto camuflada com madeira e vegetação, o que dificultava a visualização e identificação da origem.
Revolução da Moda
Para além de Pirapora e Petrolina, a indústria da moda consome por ano 80 bilhões de metros cúbicos de água em todo o mundo. A Terra está sendo assolada por uma grave crise hídrica, que ganha contornos mais dramáticos com a crise climática em curso. A moda pode ser uma propulsora das mudanças urgentes do uso de água em sua cadeia produtiva. A tecnologia e a inovação são importantes aliadas.
É o caso da Pegada Hídrica, uma iniciativa da Vicunha Têxtil, maior produtora mundial de índigos e brins, em parceria com o Movimento Ecoera, precursor em integrar a sustentabilidade na indústria da moda, design e beleza no Brasil. Esse projeto calculou pela primeira vez na história da moda nacional o consumo médio de água na produção de uma calça jeans.
Foto: Will Shutter / Acervo / Câmara dos Deputados
A consultora de moda e especialista em design sustentável Chiara Gadaleta é o rosto do Ecoera e da parceria com a Vicunha e falou com exclusividade para o site do CBHSF. “A moda é um repórter do seu tempo e, hoje, a moda precisa falar sobre a agenda do clima. Como água e clima são indissociáveis, todos os envolvidos nesse setor podem e devem se engajar na discussão sobre o uso responsável do recurso em toda a cadeia de valor da moda”, comenta.
Um dos frutos dessa parceria entre a Vicunha e o Movimento Ecoera é a plataforma A Moda Pela Água (Ampa), cuja missão é ser um espaço onde setor privado, ONGs e sociedade civil se encontram para discutir o uso responsável da água no mercado da moda.
A Ampa está alinhada com a Agenda 2030, que funciona como um mapa colaborativo para a busca pelo desenvolvimento sustentável. Os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) traduzem as necessidades do planeta em várias dimensões. No caso da Ampa, tem como base os ODS 6: Água Potável e Saneamento – Assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e saneamento para todos; ODS 12: Consumo e Produção Responsáveis – Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis; ODS 14: Vida na Água – Conservar e promover o uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável; e ODS 17: Parcerias e Meios de Implementação – Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.
A Ampa reúne o nome das marcas da indústria fashion dispostas a fazer parte da mudança da relação entre moda e água e que abriram as agendas para discutir, de forma compartilhada, o uso responsável dos recursos hídricos em sua cadeia produtiva. Todas direcionam esforços para diminuir seus impactos no meio ambiente. Essas empresas são chamadas de Guardiãs. Ao longo do ano, a plataforma promove encontros com transferências de tecnologias, workshops, palestras técnicas e mentoria com experts no tema hídrico. A plataforma defende a importância de promover a transparência entre uma empresa e a outra, e incentivar a busca por soluções em coletivo.
“Acreditamos que, em grupo, as boas práticas em relação ao uso responsável da água serão disseminadas com maior potência, e as formas de redução no consumo e a melhoria da gestão, serão integradas no dia a dia das empresas com mais agilidade e eficiência. Essa é a missão da Ampa, engajar todo o setor da moda em busca de soluções que possam ser compartilhadas.”
Ampa
Os consumidores também são parte importante para a revolução da moda. Cada pessoa pode acompanhar essa evolução e fazer parte da mudança se engajando em criar uma rotina mais responsável em suas lavagens domésticas. O primeiro passo é compreender que o recurso hídrico é uma questão urgente, tanto para o planeta, quanto para o País, cidades e lares. No caso da moda, envolve todo o setor e não uma única empresa.
O caminho para criar um modelo de uso responsável e consciente de recursos hídricos pela moda passa por combinar compartilhamento de tecnologias, informações e boas práticas no uso da água, além de estabelecer metas de redução para todo o mercado. É imprescindível que todo esse esforço de mudança seja impulsionado por políticas públicas que contemplem estratégias de transição de um sistema linear para um circular, que promovam o desenvolvimento sustentável, ofereçam linhas de crédito, fomento e financiamento e incentivem a pesquisa, a ciência e a inovação.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Iara Vidal
*Foto: Câmara dos Deputados
*Infográficos: Pegada Hídrica Vicunha