Durante o II Seminário de Povos Indígenas da Bacia do Rio São Francisco, realizado em Petrolândia (PE) o líder indígena Marcos Sabaru concedeu entrevista exclusiva ao site do CBHSF.
Um dos organizadores do II Seminário dos Povos Indígenas da Bacia do Rio São Francisco, que aconteceu no último final de semana em Petrolândia (PE), o líder indígena Marcos Avilquis Campos, o Sabaru, é membro titular do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – CBHSF e integra as coordenações de duas das principais organizações do movimento indígena brasileiro, a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – Apoinme e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib. Em junho último, ele foi uma das lideranças atuantes no evento paralelo montado por indígenas de todo o mundo na Cúpula dos Povos, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20.
Sabaru é do povo Tingui-Botó, que vive no município de Feira Grande, em Alagoas, a 30 km do rio São Francisco. Filho mais velho do cacique Elisiano Campos, o Elianaê, e seu provável sucessor, ele aprendeu a fazer política com o pai e adotou como inspiração e modelo a líder Etelvina Santana da Silva, a Maninha Xucuru, morta em 2006. Transitando entre instituições, eventos e personalidades indígenas e não-indígenas, Sabaru se movimenta no mundo da política com duas marcas fortes: a postura de observador atento e uma firmeza inabalável na defesa dos direitos dos povos indígenas.
Nesta entrevista ao site do CBHSF ele diz que é político para mudar a política. A conversa aconteceu na área livre do hotel Pontal do Lago, em Petrolândia (PE), onde Sabaru confessou a tristeza diante da paisagem em frente: o imenso lago-reservatório da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga (antes denominada Itaparica), com os 10,7 bilhões de metros cúbidos de água represada em 834 km2 e, mais à frente, as serras para onde foram relocados os Pankararu, que tiveram o território inundado para a construção da barragem e hoje não têm acesso às margens nem às águas do rio São Francisco.
Crítico severo do modelo de desenvolvimento brasileiro, Sabaru recorda que muito antes dos cientistas, os “parentes”, como se autodenominam os indígenas, já apontavam para a insensatez de uma visão de mundo que enxerga na natureza apenas recursos materiais, desprezando os valores imateriais. E aponta o erro da sociedade não-indígena que “na mata, só enxerga a madeira”.
O que significa Sabaru?
Tem alguns significados. O mais simples é que é um peixe do São Francisco. Os outros estão ligados à divindade e à família, a uma parte do clã. Porque mesmo dentro de um mesmo povo tem um clã. Nós somos Tantinan. Na verdade já existiu outro Sabaru.
Seu sobrenome é Campos…
Foi um padre que fez isso. Ele trocou os nomes da gente. Nossa etnia foi formada por quatro primos. Ele colocou os nomes de Ferreira, Campos e Muniz. Só que o nosso nome é Tantinan. Ele colocou isso aí, na época o pessoal não entendia muito, e chegava no cartório eles não deixavam usar o nosso nome, inventavam nome, os parentes não se importavam muito, às vezes era até o povo do cartório que dava o nome.
Como foi na Rio + 20?
Na verdade a gente não participou da Rio + 20, nós fizemos o Acampamento Terra Livre – ATL, fomos para a Rio + 20 desdizer o que estava sendo dito lá, foi uma programação paralela com a Cúpula dos Povos. Havia indígenas de outros países, que se somaram a nós e fizemos um debate próprio nosso, nós não fomos lá discutir crédito de carbono nem como vender, nem como arranjar um dinheirinho para… E também fomos levantar a questão do PAC, porque há 504 projetos em terras indígenas – hidrelétricas, rodovias, ferrovias, esse tipo de coisa – tudo isso acontecendo sem consulta, sem olhar a questão ambiental, a questão cultural, a questão social… Então o acampamento foi lá dizer que sustentabilidade não é o que estão dizendo aí. E fomos falar sobre o país, que nessa ganância de ser uma potência está passando o trator em cima de todo mundo, está querendo ser uma potência a qualquer preço e a qualquer custo, sem respeitar as normas, os tratados, as convenções, os artigos da Constituição.
Quando você começou a fazer política?
Eu sei que quando eu tinha 15 anos a gente conseguiu demarcar duas terras. Comecei a andar com meu pai quando tinha cinco anos, a primeira viagem que fiz pra Brasília, eu tinha cinco anos. E aí teve uma pessoa que foi muito importante na minha vida, que foi a Maninha Xucuru. Foi quem fundou o movimento indígena no Nordeste, uma figura histórica, era a liderança. Era do povo Xucuru Kariri, de Palmeira dos Índios, em Alagoas. Ela morreu de insuficiência respiratória, num hospital, não tinha balão de oxigênio. (pausa).
Mas é outro tipo de política…
Minha ação é política e cultural. Só fiz isso, nunca fiz outra coisa, nem vou fazer. Mas é outro tipo de política. Na verdade a nossa política é para exigir uma política que não essa que está posta aí. A nossa luta é desigual, porque estamos tentando que o país nos reconheça e nos dê direitos, que tenha políticas específicas para os povos indígenas, para as comunidades tradicionais também… Que haja um olhar diferenciado para esses povos, que se repare alguns erros que foram cometidos no passado. E estamos tentando mostrar que esse não é um país de todos. Porque estamos aqui desde o início e ainda não tivemos chances. A gente tem o pior tipo de escola, a gente tem a pior saúde, a gente não tem um processo de terra demarcada ainda, enfim, a gente tá na linha da miséria ainda, sendo que tem um monte de coisa que nos ampara… Nós temos direito a uma saúde diferenciada, temos direito a uma educação específica, a Constituição nos dá uma série de direitos, a Convenção 69 fala disso, a carta da Declaração da ONU fala disso… E não existe isso. E aí você tem um governo que era popular, que foram os piores governos. Os últimos governos, Lula e Dilma, são os piores, porque estão fazendo as coisas a pulso… Por exemplo, faz Belo Monte, e por mais que as pessoas digam que está errado, Belo Monte vai acontecer; faz a transposição, e por mais que um monte de gente diga que não é bom, mas vai acontecer. Jirau, Santo Antonio, usina nuclear… enfim, uma série de outras coisas. Então é um governo que oprime, que usa as mesmas ferramentas de que a própria presidenta se queixa que foi vítima, hoje ela usa da mesma forma.
Então a sua política é para mudar a política…
É uma política para mudar a política. E para contar para o Brasil a história dos povos indígenas. Quem somos, quantos somos… Hoje nós somos aproximadamente 300 povos.
Qual é a presença indígena hoje na bacia do rio São Francisco?
Nossa presença é em toda a bacia, desde a nascente até a foz. Estamos em todos os estados, sem exceção. Nas margens, nas ilhas, ou próximos. Os que não estão nas margens e nas ilhas é porque foram expulsos para a construção de barragens, usinas e outras coisas. Mas estamos sempre próximos do São Francisco. Somos mais ou menos 80 mil pessoas. Somos hoje mais de 35 povos, em todo o São Francisco.
Qual é o significado desse seminário para os povos indígenas da bacia?
A primeira coisa é que aqui você pode estar motivando ou despertando outras lideranças para dar continuidade a essa questão do Comitê, colocar para eles a importância que tem ou não. Cabe a eles avaliarem a importância da participação deles no Comitê, não só o do São Francisco, mas outros comitês que existam… É também para disseminar o que está acontecendo, até porque o membro do Comitê não tem como passar em todas as etnias para falar da pauta do Comitê, como funciona, como são as coisas… Então é um momento de socializar com eles sobre o que se passa no Comitê. E como no Comitê o indígena é apenas um segmento, há outros interesses representados lá dentro, aqui é o momento de nós colocarmos no papel algumas reivindicações nossas para o Comitê.
O que representa para vocês motivar ou não, criar ou não novas lideranças?
A nossa luta é muito grande porque ela se dá por todos os lados. Temos lideranças que hoje discutem saúde, temos lideranças que discutem educação, lideranças que discutem sustentabilidade, terra, território, enfim… Então temos que ter lideranças que façam também essa discussão no Comitê, que é a questão dos recursos hídricos, é um tema muito interessante. Para cada área nós temos que identificar pessoas para discutir esses temas. Temos que ocupar lugares, temos que fazer a discussão. Porque qualquer coisa que se falar disso aí tem a ver com nós, com os indígenas. Não vejo como falar de rio sem ter a presença do indígena. Então, essa é a idéia. Se você não capacita as lideranças, se não motiva, se não incentiva, então futuramente esse espaço fica ausente.
É difícil motivar, capacitar lideranças dentro dos povos indígenas?
Não é difícil motivar a liderança, o que é difícil é que quando a liderança chega fora da aldeia ela encontra a visão, o interesse do outro, que é muito diferente da dele. Esse é o problema maior. É que os interesses dos não-indígenas, o ponto de vista deles, o modo de ver as coisas, é totalmente diferente. Então é muito difícil, porque como é que você vai convencer todo um país de que o que você pensa e acha, o que você vê é que é o certo? É uma questão de convencimento também.
É diferença de olhar, valores, linguagem?
É diferença de valores, de mundo, de cosmologia… É que para a gente tudo tem sentido, tudo está ligado, uma coisa com a outra… Por exemplo, não existe recurso hídrico para nós. Existe o rio, que tem as divindades que lá moram, que tem toda uma importância cultural, que é território de um grupo, tem toda uma espiritualidade, tem a questão da pesca, tem a questão do artesanato… Não é só recurso hídrico. Quando as pessoas falam “recurso hídrico”, resumem tudo. Quando as pessoas, por exemplo, discutem a questão do aproveitamento dos recursos hídricos para irrigação, ou para uma hidrelétrica, é muito simples. Para nós não é só aquilo, não é tão fácil assim. Os parentes não entendem assim. Quem te deu esse poder para você mexer nas coisas da divindade, transformar o ambiente? Então a gente não consegue entender esse tipo de coisa, sabe que vai fazer um estrago, que vai fazer mal…
O que esse ambiente aqui, às margens do lago da usina de Itaparica, lhe sugere?
Esse aqui é um ambiente triste, né? Um lago parado, morto, um monte de água, mas não é o rio. E quando a gente olha ali dentro vê uma cidade enterrada, o território dos parentes debaixo d´água, os cemitérios, os lugares onde eles pescavam e brincavam debaixo d´água. E ao mesmo tempo você olha para a serra, que é a serra dos Pankararu, e eles lá… tudo é eles: entre as serras, em cima e por trás da serra. Ao mesmo tempo que se criou uma usina para o progresso, você tem uma comunidade que não tem sequer saneamento, água, enfim, ignorada pela sociedade… As pessoas não entendem, não compreendem… Eu vejo aqui a prova da nossa teoria. A gente consegue provar que o progresso não deu certo, pelo menos para nós. Esse desenvolvimento não foi para a gente. Ele é para alguns. Taí, depois da usina feita, eles saíram para a construção da barragem e até hoje sequer água eles têm, morando a três, quatro quilômetros do rio. O país hoje é o maior produtor de soja, de frango, suco de laranja, é a quinta ou sexta potência mundial, querendo ser a terceira… E aí? Ao mesmo tempo você tem lideranças assassinadas, presas. A Constituição previu que em cinco anos as terras seriam demarcadas, e isso não aconteceu, há um desrespeito à Convenção 69, agora tem essa portaria da AGU, que permite entrar nas nossas terras sem direito a consulta… Que progresso é esse?
O que o rio São Francisco representa para vocês?
O rio São Francisco é a história dos povos indígenas, ele sempre foi o caminho da articulação dos povos indígenas, desde antigamente. O local que nos uniu. O rio nunca nos separou. O caminho por onde os Paiaiás, lá perto do Salitre, vieram encontrar os Caetés para tocar fogo nos engenhos, porque já havia ameaça. Eles vinham pelo São Francisco. E tem a questão espiritual dos povos, as cachoeiras como moradas das divindades. Quando fizeram as barragens eles acharam que as divindades migraram, por isso entraram em desespero. E tem o impacto cultural, de não poderem viajar pelo rio, como acontece com os Kariri Xocó, em Porto Real do Colégio.
Como você vê a realidade da bacia do São Francisco hoje?
As cidades são miseráveis, o índice de mortalidade, de renda… O que é que se tem? Qual foi o desenvolvimento? Empobreceu mais… Antes havia produção de barco, rede, pesca, caça. Agora é aposentadoria e algum ganho da Prefeitura. O pescador virou vigia de tanque-rede, perdeu o conhecimento milenar da produção de barcos. Quanto vale isso? Desativaram as cachoeiras… Tá provado, foi um fracasso. Primeiro, a Usina Três Marias, a última foi a de Xingó. E me diga, o que se tem? Falo das barragens porque as barragens são a porta de entrada para outras mazelas. Não vejo benefícios, só para alguns, que estão distantes da bacia e da realidade dos povos indígenas. A tomada da energia está na nossas costas. As pessoas querem usar o notebook, o chuveiro elétrico e nós é que pagamos o preço.
Mas vocês também usam o notebook…
Como ferramenta de luta. A maioria nem energia tem. Um lago sem peixe, torres de transmissão, projetos de irrigação… Os índios são a tomada para mil coisas. Então o caminho é a resistência. A nossa parte é a resistência. A sociedade não-indígena decide sem consultar, e nós estamos dizendo que isso não é bom e estamos conseguindo provar. Os pajés foram ignorados e hoje os cientistas estão dizendo aquilo de outra forma. Os pescadores disseram isso há muito tempo.