Em 1985, o professor Evandro Moraes da Gama, do departamento de Engenharia de Minas da Universidade Federal de Minas Gerais, começou a se preocupar com o futuro da água no estado. De lá para cá, capitaneou o projeto de desenvolvimento de uma tecnologia que pode contribuir para solucionar o grande problema da mineração: o “rejeito” – ou fração estéril produzida pelo beneficiamento de minério, armazenado em barragens que se transformaram em bombas-relógio, sobretudo após o rompimento de duas delas, em Mariana e Brumadinho.
Com a nova tecnologia, em vez de armazenado em reservatório d’água, o rejeito poderá ser reaproveitado, transformando-se em uma espécie de cimento – pozolana, que serve como base para vários outros materiais, tais como concreto, argamassa e pelotas de minério, utilizadas na pavimentação de estradas, construção civil, agricultura e até piscicultura. A técnica também recupera ferro para fabricação de aço.
Em entrevista à CHICO, o professor Evandro – literalmente – apontou o caminho das pedras.
Como surgiu e há quanto tempo essa tecnologia vem sendo desenvolvida?
Em 1985, o então departamento de Engenharia de Minas da UFMG já começava a enxergar o problema da água em Minas Gerais. Fizemos um projeto alertando e propondo soluções e enviamos para a Finep (Financiadora de Inovação e Pesquisa). Nesse projeto, incluímos o uso dos resíduos de mineração para outra cadeia produtiva. Nessa época, tínhamos um minério que era muito rico, não sobrava tanto rejeito e as barragens eram bem menores. Com o passar do tempo, esse minério “puro” foi acabando, a China começou a comprar nosso minério e, com isso, começamos a entrar na rocha que é o nosso aquífero, o itabirito. Da preocupação com isso é que surgiu o projeto. E aí, o aumento da demanda de ferro e o lucro que a atividade trazia propiciou o crescimento desenfreado da mineração.
Como foi esse crescimento tão rápido e “desenfreado” da atividade mineradora? O que impulsionou isso?
Com o aumento da demanda, as empresas começaram a desenvolver técnicas com a utilização de água e amido. Com essa técnica, forma-se uma bolha que capta o ferro (flotação convencional), a bolha sobe, solta o ferro e a sílica desce. Isso começou com cerca de 10 toneladas/hora. De repente começamos a produzir 100 toneladas/hora. E com isso, foi aumentando o tamanho da cava, a quantidade de equipamento, o tamanho de caminhões numa velocidade que a própria tecnologia da ecologia não entendia. Era uma ignorância, e não uma maldade. O fato é que o crescimento do consumo e o fenômeno da globalização aconteceram de forma tão rápida que a gente entrou num módulo de continuar minerando, retirando. A velocidade com que a mineração se expandiu e a necessidade de se produzir minério cada vez mais rápido e em escalas cada vez maiores fez com que a ganância pelo dinheiro rápido superasse a inteligência da engenharia. A mineração começou a ser feita a toque de caixa. As barragens foram recebendo rejeito numa quantidade muito superior ao que elas aguentavam. Barragens com concepção de 1950, recebendo rejeito de tecnologias de 2010, 2015. Uma tecnologia de altíssima velocidade sem a preparação do alicerce.
E já estamos sofrendo as consequências disso. O rompimento das barragens da Samarco (em Mariana/MG) e da Vale (em Brumadinho/MG), fizeram estragos irreversíveis, não só no meio ambiente, como acarretaram a morte de centenas de pessoas. Como podemos impedir que isso ocorra novamente?
Chegamos num disparate: um celular que pesa cerca de 250 gramas, gera 1.500 quilos de rejeito, e não se sabe o que fazer com isso. O mundo vai numa situação que esse consumo direto nos obriga a conviver com um inimigo que é muito feroz, que é a vontade de ter, sem saber o que se quer ter. Isso é um problema do ser humano. Se não houver uma educação voltada para o querer coletivo, a gente vai voltar à Idade da Pedra. Estamos prejudicando a água que a gente bebe, o que é de uma ignorância, de uma falta de visão coletiva. A natureza aqui no Brasil é tão abundante que a gente joga comida fora tendo gente pobre. Essa abundância nos leva a um sentimento de que a natureza aceita qualquer desaforo.
A partir de 1997, começamos a entender que algo precisava ser feito. Eu fui pra França, onde fiquei por nove anos. A França, antes da I Guerra Mundial e no período entre guerras, era uma grande produtora de carvão. Hoje, todas as minas de carvão estão fechadas. Mas o lugar morreu? Não. Criou-se uma economia paralela. Hoje a França constrói estradas com rejeitos a um terço do custo do Brasil, o museu George Pompidou é em parte construído com material reciclado. Baratear a construção civil, proporcionar um cuidado maior com a natureza, proporcionar o crescimento da agricultura familiar, ou de uma agricultura menos infestada de inseticida, nos proporciona uma melhor condição de vida. Então, esse foi o raciocínio que eu levei para o departamento de Engenharia de Minas da UFMG.
E foi a partir daí que a tecnologia de reutilização do rejeito de minério começou a ser desenvolvida?
Sim. A partir do raciocínio de que a gente tem que tentar fazer uma mineração que aproveite tudo. Isso cria uma economia para a gente não ficar refém da indústria de mineração. Vamos ter que sair da economia do ferro e entrar numa economia ligada à infraestrutura, porque os materiais que estão junto com o ferro servem muito para a construção civil e para a infraestrutura. Eles substituem parte do calcário e toda a areia de rio, por exemplo. O cimento é produzido basicamente da calcinação do calcário gerando milhões de toneladas de gás carbônico para o meio ambiente. Se usarmos a pozolana produzida com resíduos de mineração faremos o cimento mais resistente, sustentável e preservaremos as formações calcáreas, onde sempre temos grutas e vestígios de outras civilizações. Tudo o que estiver nas barragens de minério pode virar produto. A proposta é termos um sistema sustentável completo na cadeia da mineração. Isso é técnica e economicamente viável.
Em que os rejeitos podem ser transformados?
Tijolos, lajotas de pisos e blocos, além do produto-base, a pozolana – um pó semelhante ao cimento convencional, mas que tem a vantagem de ser colorido, de acordo com a característica do minério: vermelho, rosa, ocre e marrom. Esse pó substitui o calcário, fazendo com que o cimento fique mais maleável, um pouco mais plástico, não agride a mão do operário e cola de forma melhor, e consegue ter uma resistência melhor ao tempo. Com esse material é possível construir casas, pavimentar estradas e ainda pode ser utilizado na agricultura e na piscicultura.
Como é a utilização na agricultura e na piscicultura?
A partir do resíduo que está na barragem são feitas pelotas quase esféricas. Fizemos vários testes na Escola de Veterinária da UFMG. Colocamos camadas de uma esfera cascuda (pelotas) no solo, que além de aumentar a umidade, faz com que a água drene melhor – você cria uma granulometria para que a planta cresça. Fizemos também uma camada de pelotas suspensas e colocamos em cima salsinha, cebolinha, hortelã e embaixo, tilápia. A tilápia se desenvolveu normalmente e o sabor ficou um pouco mais adocicado por causa do ferro. As fezes do peixe subiram para a superfície servindo de adubo para as plantas. Foi um experimento que deu muito certo. É possível desenvolver hidroponia em larga escala utilizando esse material.
E qual o custo disso? Que impacto traria para a indústria da construção civil?
Por exemplo, uma casa de 42 m² que nós construímos [essa casa está em Pedro Leopoldo, no Centro de Desenvolvimento Sustentável], custou 60% do valor se construída com materiais convencionais, do telhado à base. Uma tonelada de cimento puro, sem colocar rejeitos, está em torno de R$ 72,00 (custo). Quando entra a pozolana, ele cai para cerca de R$ 54,00. A areia de rio custa em torno de R$ 60,00 a tonelada. A nossa areia sai a R$ 24,00 a tonelada. Aí existe também a necessidade de se ter uma visão econômica mais ampla. Você não pode introduzir no mercado um produto que vai fazer com que o preço do cimento caia de uma forma que leve as empresas de cimento à falência. A entrada tem que ser paulatina.
Qual o impacto que a geração de produtos a partir de rejeitos poderia ter no volume de material hoje colocado em barragens?
Fizemos algumas projeções. Num cenário de curto-prazo, até 2021, a gente teria absorção de 8% de rejeito de 15 bilhões de toneladas, o que já é muita coisa. A barragem que estourou de Brumadinho poderia fazer todo o recapeamento de Montes Claros. Em um cenário de longo prazo, em 2039, teríamos já 61% do rejeito aproveitado. Aí, ficaríamos iguais à China, que para 2039 está aproveitando 75% de seu rejeito, fabricando de porcelanato a dormente para estrada. Nós compramos porcelanato da China, feito com o nosso rejeito. Então, vai entender!
Como é que as mineradoras fornecem esse rejeito? Há uma parceria?
Foi criado um modelo de negócios com a Codemig (Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais), que abraçou essa causa agora. O estado de Minas Gerais está pretendendo fomentar por meio de parcerias uma ou mais usinas. Funciona da seguinte forma: a mineradora negocia com a empresa interessada em tratar os resíduos com a nossa tecnologia, uma área, dentro daquela área que ela está, que já foi licenciada ambientalmente, com uma saída direta para a rodovia, de forma que se tenha a liberdade de vender o material produzido. A empresa poderá receber por ano, cerca de 150 mil toneladas de rejeito. A partir daí, produzir pozolana, cimento. Isso vai para a construção civil, para construções habitacionais e industriais, para a área de pavimentação. Para cada 10 km de estrada, vamos poder colocar 32 mil toneladas de rejeito na base e sub-base da estrada. Para você ter ideia, a barragem de Mariana, se fosse possível fazer a estrada Fernão Dias de novo, tinha acabado com a barragem. A estrada teria consumido tudo.
Como você enxerga o futuro da mineração?
Há ecologistas que querem parar a produção de minério. Eu não sou dessa linha. Sou da opinião de que a mineração tem que funcionar, mas tem que funcionar no cabresto, com a fiscalização da população de forma semanal. Tem que prestar contas do que faz. Tem gente que quer virar a economia do estado para um estado totalmente turístico. Mas Minas Gerais, como o próprio nome diz, é um estado minerário. Tivemos o ciclo do ouro, do diamante, e agora estamos no ciclo do ferro. Mas estamos também no ciclo da água. Então, a queda de braço é essa: água sim, minério de ferro, até que ponto? Um estado ou um país aquífero teria muito mais lucro explorando água. Mais fácil tirar, menos poluente, e água mineral de exportação é caríssima. Vide uma Perrier da vida. O modelo econômico da indústria extrativista e do minério de ferro precisa passar por uma reformulação. Tem que ser lei, além de estadual, federal. Tem que se enxergar isso como economia circular de mercado, regional, com leis pertinentes a esse mercado. A lei Kandir, feita na época de Fernando Henrique Cardoso, tira o imposto ICMS para favorecer a exportação de minério de ferro. Agora, coloca imposto para ver se vai exportar tanto. Não vai. Então é melhor transformar aqui dentro para gerar economia interna. Então, essa visão de Brasil que me pintou agora.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Mariana Martins
*Foto: Bianca Aun