Desde a invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumière, em 1895, o que conhecemos atualmente por cinema já passou por provações ao longo de sua história. Por ser um meio de comunicação para as massas e fruto de um trabalho coletivo, ele já foi visto com desconfiança por algumas camadas da sociedade, que o acusavam de uma suposta ausência de atributos artísticos e de uma linguagem simples. De lá para cá, a consolidada sétima arte respondeu com atualizações nas formas exibição e na relação com o público, dentro e fora das tradicionais salas escuras.
Se o cinema podia ser resumido a filmes de longa-metragem, produzidos em película, que seguiam um processo próprio, a cena contemporânea mudou essa definição, como explica a doutora em Comunicação e Cultura e professora da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, Simone do Vale: “agora que tudo é bit, que tudo é digital, não tem mais uma diferença antológica na questão da própria origem da forma cinema”. Mesmo com essas mudanças, a produção cinematográfica segue marcada por processos industriais, que não diminuem em nada a sua potência como arte: “nem só o autoral, nem só o de bilheteria. O cinema tem várias vocações. Entreter não é um pecado, não compromete a arte”.
Ainda que essa discussão persista, a evolução tecnológica permite outras problematizações. Simone diz que, apesar da popularização das plataformas digitais, que transmitem filmes via transferência de dados (streaming), o cinema segue relacionado ao circuito das salas de exibição: “quando a gente assiste a um filme na internet, você sabe que não está vendo cinema, porque você não está na sala, com a tela, junto com uma plateia, em uma sala escura. A experiência é o que define, cinema é aquilo que você experimenta na sala de exibição”, sintetiza.
Antes de chegar às plataformas digitais, as próprias salas passaram por adaptações. Se antes havia um projetor para cada ambiente, por ser economicamente mais viável, essa forma convencional de assistir aos filmes foi otimizada, sob a perspectiva comercial, pelas salas multiplex, em que um único aparelho é capaz de transmitir filmes diferentes para mais de um espaço. De acordo com dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o país tinha 3.223 salas em 2017, com a quase totalidade, 89,3%, localizada em shopping centers. A professora acredita que a diminuição dos cinemas de rua é uma tendência global relacionada à especulação imobiliária e às crises que essa indústria sofreu ao longo do tempo. Moradora de Niterói (RJ), ela diz ainda se lembrar de “quando as pessoas saíam em peregrinação pelas ruas, como a Coronel Moreira César, paralela à quadra da praia de Icaraí, onde havia um cinema por quarteirão”.
O professor do curso de Jornalismo Cultural da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Fábio Iorio, defende que a experiência do cinema ainda é diferente das demais, com o seu espaço e o seu lugar, mesmo que as salas estejam em áreas de consumo: “para você ir até um lugar ver um filme, gastar dinheiro, você faz disso um grande acontecimento. Por isso que dentro do shopping há mais apelo, porque as pessoas vão até lá por um conjunto de motivos, não é apenas pelo cinema”.
Em São Paulo, tendências e tradições
A capital paulista reúne a maior quantidade de salas entre as cidades brasileiras, com um total de 347, as quais 87,6% em shoppings, segundo a Ancine. Sinal dos tempos, um cinema localizado em um centro comercial a céu aberto no Itaim Bibi oferece seis salas digitais, poltronas espaçosas e reclináveis, com distância maior umas das outras, menos lugares por sala e bandeja retrátil para apoiar as guloseimas. Na bombonière, o cardápio inclui pipoca com sabor, cerveja e sorvete. “É um público ávido por conforto, luxo e exclusividade. Além disso, é um hábito de consumo vir ao cinema e depois sair para jantar”, diz a gerente de marketing da rede, Patricia Cotta.
A mudança no formato de transmissão foi acompanhada de uma nova dinâmica na recepção do público e na motivação de ir ao espetáculo. Os diferenciais oferecidos pelas ditas salas vip e a promessa de diversão podem competir com a própria narrativa dos filmes. “Estamos vendo agora o que os franceses viram em 1895, 1896, que é o cinema de atrações [que buscava surpreender o espectador], que sempre permeou a história do cinema”, diz Simone, otimista com as novas experiências, como as poltronas que vibram e a exploração dos sentidos, a partir de elementos como movimento, água, cheiro, vento e iluminação: “alguém que não pode ver ou escutar pode experimentar a narrativa com toda essa mecânica. O importante é que a experiência de ir ao cinema seja preservada”.
Alternativas para um acesso ainda limitado
Seja para entreter, seja para fazer pensar, a experiência de ir ao cinema ainda é restrita a 10,4% dos municípios do país, de acordo com o suplemento 2014 de Cultura do Perfil dos Municípios Brasileiros (Munic), pesquisa do IBGE cuja nova edição foi a campo em 2018. A gerente da Munic, Vânia Pacheco, diz que o questionário é respondido pelo gestor local de políticas culturais e precisou passar por adaptações, uma vez que os cinemas, em sua maioria, não são municipais: “de uns tempos para cá, um estabelecimento passou a ter quatro, cinco salas. O gestor público não é obrigado a ter conhecimento dessa quantidade, então perguntamos as principais formas de fomento”.
De acordo com a pesquisa do IBGE, dos 5.570 municípios do país, 22,4% promoviam diretamente ou apoiavam financeiramente festivais ou mostras de cinema, como é o caso de Penedo (AL). Desde 2016, lá ocorre o Circuito Penedo de Cinema, que, com apoio do poder público e de outros parceiros, reúne um festival de cinema brasileiro, um festival universitário, um encontro regional e uma mostra ambiental. A relação dos penedenses com o cinema remonta ao passado, em particular os anos de 1975 a 1982, quando o município, então com 37.442 pessoas, segundo o Censo 1980, recebeu oito edições do Festival do Cinema Brasileiro: “para se ter uma ideia, Cacá Diegues lançou ‘Bye, Bye, Brazil’ aqui. Não foi em nenhuma grande capital, foi no interior de Alagoas, em uma cidade que já teve um cinema para mil espectadores”, conta o coordenador geral do Circuito, Sérgio Onofre.
Quando ele e sua equipe chegaram à cidade, em 2006, Penedo possuía apenas um equipamento cultural, o Theatro Sete de Setembro, o que o motivou a pensar em alternativas: “começamos com uma ação cineclubista em 2008, com o cinema na rua. Depois passamos por seis edições do festival universitário. Em 2016, já com acúmulo de experiência, chamamos de volta o antigo Festival do Cinema Brasileiro”. Além de permitir à população voltar às salas de exibição, Sérgio tem no Circuito um projeto ambicioso: “trabalhamos também com a formação profissional em um laboratório-escola, com produção e pesquisa, e com a exibição, que é a fruição do produto final. A previsão é abrirmos um curso de graduação para fecharmos essa cadeia que é o cinema”.
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*Fonte: Agência IBGE