Água correndo na porta não significa tranquilidade, nem que há água para todos. Essa é a realidade das cidades do semiárido brasileiro que, mesmo estando inseridas em uma bacia hidrográfica, não dispõem de água em quantidade suficiente e qualidade para todos.
Localizado em parte do território da Bacia do São Francisco, ocupando 58% da área e abrangendo 270 municípios ali inscritos, o polígono das secas, região geográfica situada no Nordeste e no extremo norte da região Sudeste do Brasil, até o norte de Minas Gerais, é reconhecido pela legislação como sujeito a períodos críticos de prolongadas estiagens. A criação dessa área aconteceu em 1946 e foi oficialmente instituída em 1968, por meio da Lei 63.778, decretada pelo governo brasileiro que tinha o objetivo de criar políticas públicas específicas de desenvolvimento econômico e social para a região, mediante o cenário natural de seca enfrentado pela população.
Ciclo natural caracterizado, no geral, pelo baixo regime de chuvas e pela aridez do solo, típico de regiões de clima semiárido, a seca mostrou que não se pode combatê-la, mas o caminho é aprender a conviver. Essas características justificam o motivo pelo qual mesmo sendo regiões ribeirinhas, muitas cidades da bacia do São Francisco estão atualmente sob o efeito de decretos de emergência devido à seca ou estiagem.
Em março deste ano, o Governo de Pernambuco decretou situação de emergência em 55 municípios do Agrestepor um período de 180 dias. No início de setembro novo decreto, por igual período, foi publicado para 54 municípios do Sertão pernambucano por causa da estiagem. Em agosto, a Defesa Civil Nacional reconheceu situação de emergência em 38 municípios de Alagoas atingidos pela estiagem. Na Bahia, cerca de 60 municípios também estão sob efeito do decreto.
“O que acontece é que às vezes a sede do município não tem problema com o abastecimento de água, mas nos distritos, localidades do interior a água não chega. Tem o exemplo de Mirangaba, que está na bacia do Itapicuru, mas recebe água da bacia do São Francisco e está enfrentando o problema da crise hídrica e da seca, assim como muitas outras cidades”, explicou o secretário do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Almacks Luiz
Considerando as características da região que naturalmente já enfrenta a incerteza se vai ter chuva suficiente ou até mesmo se elas irão ocorrer, se soma a esse cenário, neste ano, o perigo iminente de uma nova crise hídrica. Embora o ano de 2020 tenha começado com chuvas que foram suficientes para encher os reservatórios da Bacia do São Francisco, a situação em 2021 é diferente. Os volumes dos reservatórios reduziram drasticamente.
Um novo relatório elaborado pelo consultor Leonardo Mitre, contratado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), deu uma dimensão ainda mais assustadora para o cenário que já era de preocupação. De acordo com o documento, os resultados da simulação apresentada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) na última reunião da Sala de Situação da ANA previram que o reservatório de Sobradinho deve atingir volume útil próximo de 17% no início de dezembro, com perspectiva de continuar diminuindo seu volume durante o mês. “Caso ocorra situação semelhante ao ano passado, em que o reservatório ainda foi deplecionado no mês de dezembro, corre-se o risco de atingir volume útil da ordem de 10% do total disponível ao final do ano, sendo aumentado o risco de crise hídrica na bacia, que pode ser ampliado sobremaneira caso ocorram duas situações possíveis: caso o período chuvoso atrase na porção mais alta da bacia, é possível que as vazões escoadas não elevem de forma adequada para iniciar o reenchimento dos reservatórios em dezembro e, portanto, os volumes acumulados caiam ainda mais em dezembro elevando o risco de falta de água para atendimento aos outros setores usuários; ou ainda, caso o período chuvoso não seja adequado, refletindo em índices de vazões escoadas bastante inferiores às médias históricas, é possível que os reservatórios da bacia não tenham a devida recuperação e, com isso, a crise hídrica seja levada para o próximo período de estiagem, com problemas ao atendimento dos usos de água na bacia em 2022”, apontou Mitre.
De acordo com o meteorologista Humberto Barbosa, fundador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), com a continuidade de seca intensa nas regiões brasileiras, a chuva deve ocorrer logo na região Centro-Sul do País, diferente do que é previsto para o Nordeste. “A gente divulgou no último dia 21 de setembro o mapa semanal da umidade do solo, uma imagem processada pelo Laboratório Lapis. O mapa destaca situação de estiagem persistindo em quase todo o Brasil, com exceção de algumas áreas da Amazônia, de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No Nordeste do Brasil, as primeiras chuvas de outubro começam a chegar pelo oeste e sul da Bahia. No Semiárido, as chuvas começam a chegar em fevereiro. No atual cenário de secas, é fundamental fortalecer a governança compartilhada das águas, para atender aos usos prioritários e garantir a gestão sustentável deste recurso escasso”, afirmou o pesquisador.
Causas e efeitos
Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), eventos extremos como secas, enchentes e outros, se tornarão mais intensos e frequentes a cada fração de aquecimento na temperatura do planeta. O mais recente relatório IPCC conclui que “isso é apenas uma amostra do que está por vir”. E aponta que cada fração a mais de aquecimento virá com consequências mais perigosas e caras.
De acordo com o MapBiomas, a perda de água detectada é agravada, dependendo das condições meteorológicas de curto prazo, levando a prejuízos ambientais com fortes impactos na economia e na vida social. As causas desse resultado estão ligadas às perdas nos biomas. O Cerrado perdeu quase metade de sua cobertura natural, enquanto a área de agricultura cresceu quase seis vezes entre 1985 e 2020. A perda líquida de vegetação nativa neste período foi de 82 milhões de hectares. A área de pastagem cresceu 39% e a área de agricultura aumentou de 20 milhões de hectares, em 1985, para 56 milhões de hectares, em 2020.
“Recentemente, publicamos um artigo sobre as últimas secas na bacia do rio São Francisco. O diagnóstico é que, nas últimas décadas, o rio São Francisco vem enfrentando secas extremas, com eventos climáticos que vêm afetando a bacia, especialmente na última grande seca (2011-2017), que chamamos no Livro “Um século de secas” de “A seca do século”. O fato é que, de 2017 para cá, apesar de não ter havido secas extremas, o regime de chuvas normais não foi recuperado, não houve o retorno com anos de chuvas significativas. Com a mudança climática, há uma tendência que as altas temperaturas levem à perda hídrica, pela evaporação. Com a redução da chuva, a perda da Caatinga na bacia do rio São Francisco, a irrigação e o assoreamento, a desertificação, são processos antrópicos que intensificam as mudanças ambientais. Tudo isso tem colocado pressão sobre a bacia, uma das mais importantes da história do Brasil”, concluiu, alertando que “é preciso um plano de contingência, levando em consideração esse novo cenário de aumento das temperaturas, desmatamento e mudança climática, práticas de manejo da irrigação adequadas. O IBGE já mostrou um diagnóstico de que poucos municípios do Brasil dispõem desse instrumento de contingência para planejamento das ações de adaptação à seca. A desertificação também é uma ameaça ao rio São Francisco e já representa 13% na região”.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Juciana Cavalcante
*Fotos: Edson Oliveira e Kel Dourado