Água, esse bem comum

09/08/2022 - 11:55

Ailton Krenak ministrará a Palestra Magna no IV SBHSF


Considerado uma das maiores lideranças indígenas do Brasil, Ailton Krenak é filósofo, escritor, poeta e jornalista. Em 1987, protagonizou uma das cenas mais marcantes da luta indígena quando discursou na Assembleia Constituinte com um terno branco e o rosto pintado de jenipapo para protestar contra o que considerava um retrocesso na luta pelos direitos indígenas.

Fundou a ONG Núcleo de Cultura Indígena, organizou a Aliança dos Povos da Floresta e é doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais. Autor dos livros “O Amanhã Não Está à Venda” e “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, tem mantido um diálogo constante sobre as consequências das nossas ações sobre o planeta.

Natural da região do médio Rio Doce, em Minas Gerais, onde vive com outras 130 famílias no território do povo Krenak de 4 mil hectares, o líder indígena conversou com a equipe do Travessia e falou sobre a palestra magna que irá apresentar no IV Simpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. O evento acontecerá entre os dias 14 e 16 de setembro, em Belo Horizonte (MG).

Entrevista: Luiza Baggio

1) “Água: esse bem comum” será o tema da palestra magna apresentada pelo senhor no IV SBHSF. Fale um pouco mais sobre o tema?

O tema da palestra é uma crítica ao modelo de gestão que existe atualmente e que usurpa das pessoas o bem comum [água] em detrimento ao comércio, indústria etc. Vivemos quase um consenso de que a água pode ser uma commodities. Se a água é um bem comum seu acesso deveria ser universal. Mas se a água virar commodities vai virar um bem econômico e favorecerá alguns monopólios, o que coloca em ameaça nossos aquíferos. Sendo assim, como vamos nos debater para proteger uma bacia hidrográfica como a do São Francisco?

2) E o que o São Francisco remete para o senhor?

O São Francisco é o rio da integração nacional. Ele está presente na obra de grandes autores, poetas que cantaram o maravilhoso Velho Chico. Mas, o Opará é uma entidade, assim como todos os outros rios. O que vejo é que o São Francisco não está recebendo a atenção que merece e tem sido atravessado por todo o tipo de interferências. Tem muita gente o drenando e os interesses mercadológicos têm predominado. Nós queremos o Velho Chico vivo e, para isso, devemos prestar mais atenção nele. Os rios têm sabedoria, eles podem ensinar a gente. Vamos aprender com eles!

3) No seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” você mostra que existe uma dissociação da ideia de que o mundo é uma coisa e nós, os humanos, somos outra. Foi assim que nasceu essa abstração que chamamos de meio ambiente?

A grande diferença que existe do pensamento dos indígenas e dos brancos, é que os brancos acham que o ambiente é ‘recurso natural’, como se fosse um almoxarifado onde você vai e tira as coisas. No pensamento do índio, se existe um lugar onde você pode transitar por ele, é um lugar em que tem que se pisar suavemente, andar com cuidado, porque ele está cheio de outras presenças. Então, não existe o ‘meio ambiente’, um lugar que é o ‘meio ambiente’. ‘Meio ambiente’ é o almoxarifado, é um depósito onde você tira. Você tira minério, você tira floresta, você tira água. Você bombeia tudo, exaure. Isso é o ‘meio ambiente’.

4) O senhor é um grande crítico do desenvolvimento sustentável quem vem fazendo vítimas como os povos indígenas, ribeirinhos, das florestas e quilombolas. Há saídas para esse desenvolvimentismo do país ser sustentável?

Essa expressão é uma falácia! Se é desenvolvimento, não pode ser sustentável. No pensamento do povo indígena não há nada sustentável naquilo que é chamado de economia, porque ela supõe que você vai saquear a terra, você vai tirar coisas. Se você tira e não põe, não é sustentável. Mesmo quando se fabrica algo com todos os controles, são necessários materiais que não são repostos na natureza. Como produzir algo sustentável se o sistema extrativista é soberano e altera os ciclos de vida na Terra?

5) As mudanças climáticas são uma realidade na Terra e o senhor costuma dizer que o planeta está com febre. O que isso pode nos dizer?

Estamos experienciando a febre do planeta e, aparentemente, uma parcela significativa da humanidade não está percebendo – ou, então, está negando. O aumento da temperatura do planeta vem como uma reação; mostra que o organismo Terra está reagindo às ações predatórias e destrutivas dos seres humanos, mas estamos tão centrados em nós mesmos que somos incapazes de ouvir esse descompasso. E um corpo em febre expele o que te faz mal. Nós estamos desorganizando a vida aqui no planeta, e as consequências disso podem afetar a ideia de um futuro comum – no sentido de a gente não ter futuro aqui junto aos outros seres. Os humanos serem finalmente incluídos na lista de espécies em extinção.

6) O Rio Doce foi contaminado em 2015 pelo rompimento da barragem Fundão. Quais as consequências para o povo Krenak?

Eu costumo dizer que agora estamos vivendo uma economia do desastre. Famílias que viviam de subsistência, de uma hora para outra, passaram a viver da indenização. Essas pessoas deixam as suas vidas e passam a viver uma outra vida, que é a vida de quem vai administrar o dinheiro da indenização. É como se você se aposentasse antes do tempo, como se você tivesse sua vida suspensa e uma vida substituta para você ir para fila todo mês pegar dinheiro, pagar conta e comprar coisa. É um confinamento! Antes, nossa água vinha do próprio Watu – como os Krenak se referem ao rio Doce – e de nascentes ou minas dentro do território. Hoje nossa água é mineral e chega no caminhão-pipa.


Ouça a entrevista na íntegra!


Assessoria de Comunicação do CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Entrevista: Luiza Baggio