Fruto típico da caatinga, o umbu desponta como produto capaz de gerar renda e devolver autoestima a comunidades castigadas pela seca no interior da Bahia. Beneficiado e comercializado por uma cooperativa que reúne agricultores dos municípios de Canudos, Uauá e Curaçá, o umbu tornou-se base para geleias, doces, sucos e até uma cerveja gourmet que mira o mercado internacional.
Na rica diversidade de sabores da bacia do rio São Francisco, uma pequena fruta ganha destaque não só pelo seu característico gosto azedo, e nem somente por suas inúmeras utilidades na culinária são-franciscana, mas, principalmente, pela sua adaptação a um dos biomas mais presentes na extensão do rio: a caatinga.
O umbuzeiro e seu fruto verde e redondo, o umbu, são partes essenciais da história e cultura dos povos do semiárido brasileiro e, cada vez mais, ganham importância pelo papel econômico que vêm desempenhando atualmente.
Não por acaso, o umbuzeiro foi imortalizado por Euclides da Cunha no clássico Os Sertões como “árvore sagrada do sertão”. O escritor carioca teria ficado deslumbrado com a contribuição do umbuzeiro nas estratégias de sobrevivência da Guerra de Canudos (1896).
De fato, poucos vegetais oferecem tanto à população da bacia como o umbu. E sem lhe pedir muito em troca. Crescendo nas áreas mais secas do sertão e dando safras fartas do fruto azedo, utilizado em doces, sucos e geleias, o umbuzeiro ainda entrega a sombra exuberante das suas copas aos viajantes, flores brancas e perfumadas, com néctar para produção de mel pelas abelhas, folhas para alimentação de animais, troncos curtos, cuja casca servepara chás medicinais, e a raiz, em forma de batata, que tem a capacidade singular de reservar água, mesmo nos períodos de estiagem. O nome, umbu, faz referência justamente a esse atributo: vem de ymbo, de origem tupi-guarani, que significa “árvore que dá de beber”.
Mais do que de beber, o umbu dá de comer, dá de trabalhar e tem fortalecido a convivência harmoniosa do sertanejo com o semiárido.
“Se não fosse o umbu minha vida não seria nada fácil. Há dez anos vivo do umbu e tenho conseguido uma vida melhor para mim e para meus filhos. E olha que eu ainda nem planto, eles nascem livremente e são meu sustento e meu tudo”, diz Dona Maria de Fátima Ramos, 46 anos, moradora da Fazenda Praça, zona rural de Uauá-Bahia.
Com o umbu colhido nas árvores das áreas comuns da redondeza de sua casa, ela prepara deliciosos doces, sorvetes, picolés e mousses e vende nas praças, feiras e em eventos da cidade.
“Na roça também criamos bichos, galinhas, vendemos ovos e plantamos coentro. Mas o umbu é o mais forte, pois ele rende mais, tem mais utilidade, tem muita saída”, explica.
Com uma produção caseira e tocando todo o processo sozinha, já que prefere deixar os dois filhos, de 10 e 15 anos, dedicados aos estudos, Maria de Fátima chega a faturar cerca de R$ 400,00 por mês, apenas com o umbu.
“Meu projeto agora é expandir, quero plantar mais pés de umbu, já me informei o que preciso fazer. Vai dar certo, o umbu exige pouca água, isso não será problema”, planeja a moradora, lembrando que na Fazenda Praça corre apenas um rio intermitente, o rio do Jorge, que deságua no Vaza-Barris, um dos rios de Uauá, afluente do Velho Chico.
Para potencializar trajetórias como de Dona Maria de Fátima, foi criada, em 2004, a Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc). Essas cidades baianas estão dentro da região fisiográfica do Submédio São Francisco e têm grande produção de umbu e outras frutas da caatinga. A cooperativa é resultado de uma longa atuação de associações e pastorais que, desde as décadas de 1980 e 1990, uniram os agricultores, deram capacitações e fortaleceram as possibilidades de beneficiamento do que se produz no semiárido.
“Começamos com 44 agricultores, hoje somos 249 cooperados, dos três municípios. Deste total, 78% são mulheres. O carro-chefe é o umbu, mas também trabalhamos o beneficiamento de outras frutas da caatinga, como o maracujá do mato, a manga, a goiaba e a banana. Anualmente, a produção é de 15 toneladas, em 18 unidades de beneficiamento”, explica a gerente comercial da Coopercuc e uma de suas fundadoras, Jussara Dantas Souza, nascida na comunidade de Caititus, em Uauá.
A Coopercuc atua junto a 450 famílias, envolvidas na produção de doces, sucos, geleias, compotas e polpas, produtos orgânicos (sem aditivos químicos) e um processo de consciência ambiental e acompanhamento dos agricultores para a extração sem cortes de árvores. A produção dos cooperados é intensa. Na fábrica, com capacidade para produzir 200 toneladas de doces por ano, chegam cinco caminhões carregados de umbu diariamente.
Jussara explica que mesmo com todo o esforço da cooperativa, os frutos ainda são mais vendidos in natura, o que agrega menos valor à produção.
“O umbu ainda é um fruto pouco conhecido fora da região, ainda mais seus produtos, como os doces e geleias. Não aproveitamos nem 5% do potencial da região”.
Apesar de acreditar que as duas formas de comercialização podem coexistir (in natura e com beneficiamento), o agricultor José Edmilson dos Santos, de Curaçá, explica que a sazonalidade e a especificidade do umbu, só encontradas nesta região, potencializam as possibilidades de mercado paraos produtos gerados pelo beneficiamento. Mas isso ainda pode ser ampliado.
“Outro entrave é o valor final dos produtos, por conta dos custos da produção, o que torna difícil concorrer com outras opções do mercado que não se originam de cooperativas de agricultores e não assumem compromissos ambientais no processo de produção”, ressalta.
Mesmo assim, a renda gerada anualmente pelo trabalho dos cooperados ultrapassa o valor de R$ 1 milhão, montante que pode ser dobrado a partir da ação dos revendedores. E a cooperativa tem grandes projetos de expansão. A começar por uma nova fábrica, quase pronta, na cidade de Uauá, que possibilitará uma maior produção, além de novos produtos para o mercado.
“Desde 2004, temos levado nossos produtos para dezenas de países, rompendo o preconceito com as nossas frutas, consideradas exóticas”, diz Jussara Souza. Com o selo FLO Fair Trade e Certificação Orgânica, os produtos da cooperativa passaram a serem exportados para países como a França, Áustria, Alemanha e Espanha e distribuídos pelo Brasil, em grandes redes como o Grupo Pão de Açúcar.
José Edmilson destaca ainda que as geleias e doces têm mercados específicos, mas a Coopercuc está pensando em desenvolver produtos mais populares, como polpas e sucos que podem atender ao próprio mercado interno.
“Com a inauguração da nova fábrica, vamos investir nesses segmentos também. Queremos que a safra de 2016 já seja processada lá”.
A atuação da Coopercuc junto aos agricultores e a divulgação dos seus produtos teve grande impulso com o apoio do SlowFood, movimento internacional de valorização da gastronomia e defesa da sociobiodiversidade.
“Após uma exigente análise em uma universidade na Itália, o umbu tornou-se uma das ‘fortalezas do slowfood no Brasil’, considerando o seu rico valor nutritivo”, aponta a gerente comercial.
Ao ver o pequeno fruto arredondado, de casca lisa ou textura levemente aveludada, não se imagina que se trata de uma rica fonte de sais minerais e vitamina C. E ao provar seu sabor levemente azedo, dificilmentese supõe suas possibilidades na culinária, em delícias como doces e compotas ou mesmo na comida, através da “umbuzada”, preparada pelos sertanejos para ser batida com leite ou servida com farinha de mandioca, alimento que fortalece o corpo para as árduas rotinas no semiárido.
Quem pode atestar os efeitos nutritivos do umbu (e também sua importância econômica) é Dona Juvita Gonçalves da Cruz, sócia-fundadora da Coopercuc, que aos 68 anos de idade ainda sobe no umbuzeiro para colher o fruto.
“Essas árvores são a minha vida, eu como umbu o ano inteiro, de todo jeito, não enjoo e nem me canso”, ri a agricultora, em meio aos pés de umbu de Marruá, povoado de 49 famílias, em Uauá. Ela diz ter plantado, sozinha, mais de 200 pés em sua roça. A intimidade é tanta que ela já conhece os pés mais produtivos, os que dão fruto doce, os mais verdes, os mais claros.
“Essa árvore é uma benção de Deus, até a casca é boa para fazer remédio, curar ferida. Até água ela já traz na raiz, na batata. Mata a fome e a sede também. Eu tive 11 irmãos, nove mulheres. Nas épocas ruins, era o umbu que não nos deixava morrer de fome”.
A relação com o umbuzeiro e as receitas com o fruto são aprendizados antigos da família.
“Cresci vendo minha avó fazer o vinho do umbu, essa polpa que se extrai sem mistura, sem água. Minha avó enchia o pote e dizia: ‘esse é para a Semana Santa’”, lembra a agricultora, quetem quatro filhos e quatro netos.
Fortalecida pelos nutrientes do umbu, Dona Juvita encoraja outras mulheres para o trabalho e o cooperativismo. Atualmente são 12 pessoas (apenas um homem) que tocam a minifábrica de beneficiamento em Marruá, onde se produzem doces e geleias a partir dos frutos colhidos nas roças de fundo de pasto.
“Eu só fazia para uso próprio, o doce e o vinho, na minha própria cozinha. Com o trabalho da cooperativa e de movimentos como as pastorais, o movimento de mulheres, o Irpaa (Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada) e a Igreja, veio a minifábrica.Otrabalho cresceu e hoje eu tenho um bom complemento da renda. O restante, tiramos do plantio de hortaliças e da criação de porcos, bodes e galinhas”, contabiliza.
A filha de Dona Juvita, Elenita Gonçalves dos Santos, de 32 anos, explica a jornada na cooperativa. “Quem tiver interesse no trabalho, deve ter conhecimento dos deveres, como a carga horária diária, as reuniões, os eventos, oficinas e feiras. As tarefas são todas organizadas e dividas entre os cooperados”.
As preocupações dos agricultores são colher os frutos, produzir os doces e embalar, em recipientes fornecidos pela cooperativa. A distribuição e venda cabe à Coopercuc, que repassa parte do valor aos cooperados.
“Nossa meta da safra de 2014 era de R$23 mil e foi batida nos três meses da safra (janeiro, fevereiro e março), graças ao trabalho em equipe”, destaca Elenita. “No ano que vem queremos uma produção ainda maior, pois vamos substituir esse forno de lenha por um industrial”, promete.
Novos hábitos
A união dos agricultores e a produtividade alcançada pelas minifábricas se devem às capacitações e orientações oferecidas pela Coopercuc aos cooperados.
“Temos que lidar com alguns hábitos que precisam ser trabalhados. Por exemplo, antigamente se utilizava a raiz do umbuzeiro para fazer o doce, o que causava a morte da árvore. Hoje se usa apenaso fruto e se tem consciência de que se trata de uma árvore secular que precisa ser preservada”, aponta Jussara Dantas.
A organização dos agricultores e o acesso à informação foram responsáveis por uma grande transformação no semiárido, como explica Cícero Félix, educador popular, técnico agropecuário e atual coordenador-geral do Irpaa.
“A realidade do semiárido era a lógica do combate à seca e às culturas do sertão, por meio de políticas assistencialistas, que geravam dependência, permanecendo a fome, a miséria e a desinformação. Mas sempre houve aqui um povo trabalhador, resistente e com saberes importantes, tentando sobreviver”.
*Esta matéria foi veiculada na Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 06 | MAI 2015. Para ler a revista completa, acesse.
ASCOM – Assessoria de Comunicação do CBHSF