Diz a lenda que diversos espíritos habitam as águas do rio São Francisco e para se proteger de embarcações viradas por eles, os pescadores começaram a colocar nas suas proas imagens que remetem a metade gente, metade animal. São as carrancas, capazes de afastar o mau-olhado, o azar e as assombrações. As primeiras carrancas datam de 1880. Foi assim, com este “acessório” junto às embarcações, que os pescadores ao longo do Velho Chico passaram a contar com uma nova proteção.
A figura imaginária, com olhos grandes e atentos, permeia o desenvolvimento de diversas gerações. Na década de 1950, chegando à Petrolina, no Sertão Pernambucano, Ana Leopoldina Santos ouviu essa história de um dos pescadores. A descrição da carranca lhe chamou atenção. Ana, nascida em Santa Filomena, distrito de Ouricuri, filha de louceira, aprendeu desde cedo a moldar o barro que lhe servia de sustento através da venda de vasos e panelas de barro.
Em Petrolina, encontrou solo fértil com abundância de barro às margens do rio São Francisco onde costumava lavar roupas. Da conversa com o pescador, Ana saía encantada e decidida a tirar do imaginário aquela figura descrita. E fez. Assim, começava a se transformar em Ana das Carrancas.
De forma despretensiosa, levava junto às louças que já vendia na feira livre da cidade, as carrancas, que também começou a comercializar. “No início, era tudo muito difícil e em nenhum momento imaginávamos onde poderíamos chegar com essa história de produzir carrancas de barro. Então, era mais uma forma de sustento do que propriamente a arte pela arte”, explicou Maria da Cruz Santos, filha de Ana ou ainda Maria de Ana, como é conhecida.
O começo despretensioso levou cerca de 10 anos até obter resultados como artista que era. Foi das feiras livres no centro da cidade que surgiu seu primeiro destaque. Em visita a cidade, dois jornalistas foram atraídos por um grupo de pessoas que se aglomerava em volta de algumas peças. As peças eram as carrancas feitas por Ana. Interessados marcaram uma conversa para o dia seguinte, e a partir deste encontro, nasceu a primeira publicação sobre a artesã.
O trabalho de toda a vida de Ana ganhou espaço definitivo, e parte de sua obra pode ser visitada na cidade de Petrolina, no Centro Cultural Ana das Carrancas
Na mesma década, em 1960, suas peças foram escolhidas para ornamentar a primeira biblioteca da cidade. “Depois da matéria publicada em Recife, as portas começaram a se abrir. Considero que foi a partir daí que tudo começou sob o ponto de vista do artesanato de fato. Logo veio uma encomenda de 500 peças, que para época, era muito”, conta Maria emocionada ao lembrar como ela também enveredou pela arte. “Comecei a ajudá-la [Ana das Carrancas]. Eu fazia a parte mais fácil e ela terminava com as carrancas. Certo dia, na escola, pensei, ‘vou surpreender minha mãe’, e assim fiz minha primeira peça sozinha e mostrei a ela. Senti que ela quis chorar, vi seus olhos marejados e me disse: ‘Graças a Deus, a partir de hoje já tenho quem me ajude’”. Assim, nasceu mais uma geração para o artesanato.
Do seu casamento com o piauiense José Vicente de Barros, nascido com deficiência visual, surgiu uma homenagem que marca o trabalho de Ana. As carrancas feitas por ela passaram a ter o olho vazado. “Eles sempre foram muito unidos e se divertiam trabalhando juntos. A homenagem foi um momento lindo na vida de todos nós”. Seu trabalho ganhou espaço definitivo, e parte de sua obra pode ser visitada na cidade de Petrolina, no Centro Cultural Ana das Carrancas.
Ana das Carrancas fez inúmeras peças, mas nenhum número exato pode dimensionar o tamanho da sua obra. A artesã, ao longo de sua vida, recebeu diversas homenagens por propagar a cultura nordestina. Devido a problemas de saúde e idade avançada, faleceu em 2007. Mas sua obra se perpetua. Atualmente suas três filhas cuidam do centro cultural e duas delas seguem seus passos produzindo carrancas que são expostas em feiras de artesanato e também podem ser adquiridas pelos visitantes do espaço cultural.
“Minha mãe nos deixou uma lição de vida através do trabalho e do amor que tinha com tudo que fazia. Ela dizia que suas filhas eram a corda do coração, nunca entendi o que queria dizer com isso, mas seu sentimento sempre foi muito verdadeiro e aprendemos isso com ela. Particularmente, herdei o gosto pelo artesanato e me sinto honrada em poder continuar essa história”, concluiu Maria.
Chamada por codinomes ainda como Ana Louceira, Ana do Cego e A Dama do Barro, Ana das Carrancas, artista popular, eternizou sua mensagem: “Onde encontrarem o caco de uma orelha de barro, digam ao menos, que Ana passou por aqui e deixou saudades”.
Confira as fotos
Por Juciana Cavalcante
Fotos: Juciana Cavalcante