Revista Chico: O cangaceiro dândi

18/02/2019 - 11:43


Entre armas e agulhas de bordar, Lampião se transformou no maior ícone do sertão brasileiro. Neste ensaio, as várias facetas do rei do Cangaço


Virgulino Ferreira disparava o rifle tão freneticamente que iluminava a noite da Caatinga. Dizem que vem daí o apelido: Lampião. Matava sem dó. O longo punhal era enfiado com um golpe certeiro, na base da clavícula, produzindo um esguicho de sangue. Quando não matava, aleijava, para que as cicatrizes riscadas à faca servissem de exemplo. Espalhando o terror em quase duas décadas de reinado no sertão, ele criou um estilo, virou um ícone. Gostava de costurar, bordar e posar para os jornais e revistas da moda. Saiu até no “New York Times”. Morto há oitenta anos, completos em julho, permanece controverso – e apaixonante: Robin Hood do sertão ou bandido sanguinolento?
Lampião nasceu em 1898, em Serra Talhada, no agreste pernambucano. Em 1921, seu pai foi morto a tiros pela polícia em uma rixa por terras. Virgulino jurou vingança. Entrou para um grupo de cangaceiros e matou o informante que entregou o pai à polícia. Começava a saga de Lampião, o temido cangaceiro. Seu bando chegou a contar com cem pessoas.

Virgulino Ferreira, o Lampião, foi o rei do cangaço

 
Herói justiceiro para os pobres e ladrão assassino para os ricos, roubava dos fazendeiros, matava, estuprava, sequestrava, torturava, tocava o terror. Mas também distribuía a riqueza que saqueava para os menos favorecidos. Tinha o respeito e a admiração da maioria da população oprimida do Nordeste, por desafiar coronéis, policiais e até o Estado Novo: chegou a ser incluído por Getúlio Vargas como “extremista” e teve sua sentença de morte declarada.
O cangaço surgiu no chamado Polígono das Secas, quando a fome, a falta d’água, o coronelismo, a miséria e a repressão imperavam no sertão e era forte a tradição do “banditismo de honra”. A palavra “cangaceiro” vem de canga, uma peça de madeira utilizada nos animais de carga.
Entre armas e agulhas
Aliás, não era pouca a carga que os cangaceiros transportavam. Dizem que só a roupa de Lampião pesava 30 quilos. Fora os mantimentos, armamentos, objetos pessoais e a máquina de costura Singer, onde ele mesmo costurava suas roupas. Pois o duro, corajoso e violento Lampião era também estilista. Em suas horas de paz, dedicava-se a tecidos, linhas e agulhas. E eram lindos os bordados, com flores, estrelas, símbolos místicos. Os lenços, chamados de jabiraca, eram de seda inglesa ou tafetá francês e bordados com a sigla C.V.F.L. (Capitão Virgulino Ferreira Lampião).
As mãos que seguravam armas pesadas eram ornadas de anéis de ouro e pedras preciosas, saqueados dos coronéis e baronesas. O suor do calor do sertão e das roupas de couro era coberto com o perfume francês “Fleur d’Amour”, que Virgulino passava inclusive nos cavalos. Exigia que o bando andasse bem vestido, para serem reconhecidos pelas roupas. O gosto pela estética influenciou sua companheira, Maria Bonita, que chegou a sair na “Time Life” da época como uma “mulher da moda”.
O xaxado era sua “dança de guerra”. Há relatos de ataques feitos ao som de “Mulher Rendeira” – que também foi atribuída como composição sua. Sanfoneiro, repentista, cantador, poeta, místico, enfermeiro e até dentista, Lampião era antenado com as novidades culturais da época. Ia ao cinema quando encontrava um. Lia as revistas “O Cruzeiro”, “FonFon” e “Noite Ilustrada”. Adorava ser fotografado, posava, imitando Greta Garbo ou Rodolfo Valentino, e a extensa iconografia registrada pelo fotógrafo sírio Benjamin Abrahão colaborou para sua mitificação. Gostava de ser fotografado com livros e revistas ou exibindo alguma matéria sobre ele mesmo, para mostrar que não era um “jagunço ignorante”, sabia ler. Presença constante nos jornais da época, sua fama correu mundo. Pelo New York Times, em artigo publicado em 1930, foi chamado de “Robin Hood da Caatinga”.
 

Maria Bonita ao lado de  Lampião e de membros do bando de cangaceiros

 
Emboscada
Lampião morreu em 1938, em Poço Redondo, Sergipe, às margens do São Francisco. O grupo sofreu uma emboscada quando descansava na Grota de Angico. Dizem que foi traído por um de seus capangas, que entregou seu paradeiro à volante do tenente João Bezerra. “Volante” eram as forças repressoras que faziam o papel do Exército na época. Suas cabeças foram cortadas e expostas pela cidade, como um troféu. E percorreram o nordeste nas mãos do algoz, já em adiantado estado de decomposição, atraindo multidões. Festas, desfiles, fogos de artifício, rezas e banda de música acompanharam o cortejo sinistro. As cabeças foram examinadas por médicos-legistas, para detectar “indícios de monstruosidade”. Foram classificadas como absolutamente normais.

Cabeças dos membros do cangaço viraram troféus e foram expostas em Piranhas (AL)

 
Lampião é turismo
Na Rota do Cangaço, turistas fazem o trajeto da volante que matou Lampião. O ponto de partida é o cais de Piranhas. Pelas águas do São Francisco chega-se até Poço Redondo. Em Piranhas há também o Museu do Cangaço, com fotografias, cartas, bilhetes e roupas que preservam a memória de Lampião.
Lampião é cultura
São infinitos os cordéis inspirados em Lampião, assim como uma considerável produção acadêmica e livros que contam a sua história e abordam a sociologia do fenômeno que ele expressou. Ele também inspirou grandes artistas brasileiros.
• “Capitães da Areia”, de Jorge Amado (1937), faz citações referentes à Lampião
• “O Cangaceiro”, filme de Lima Barreto (1953)
• “O Lamparina”, filme de Glauco Mirko Laurelli (1963)
• “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha (1964) também faz citações à Lampião
• “Corisco, o Diabo Loiro”, direção de Carlos Coimbra (1969)
• “Lampião e Maria Bonita”, minissérie brasileira produzida pela Rede Globo (1982)
• “O Cangaceiro Trapalhão”, direção de Daniel Filho (1983)
• “Mandacaru”, telenovela produzida pela Rede Manchete (1997)
• “Baile Perfumado”, direção de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997)
• “Canta Maria”, dirigido por Francisco Ramalho Jr (2006)
• “Cordel Encantado”, telenovela da Rede Globo (2011)
• “A Luneta do Tempo”, filme de Alceu Valença (2016)
• “Candeeiro Encantado”, música de Lenine
• “Acorda Maria Bonita! Levanta vem fazer o café, que o dia já vem raiando e a polícia já tá de pé….” A música mostra como era o dia-a-dia dos cangaceiros: acordar cedo, preparar comida e sair em fuga para escapar dos inimigos.
 

*Texto: Christiane Tassis
*Foto: Benjamin Abrahão – arquivo família Lampião