A cada ano que se passa novas tragédias ambientais atingem milhares de pessoas no mundo. Além de secas severas, no Brasil a situação segue o que vem se tornando padrão: as intensas chuvas provocam inundações, alagamentos, deslizamentos e muitas vidas se perdem. Pesquisadores apontam que isso é consequência das mudanças climáticas cobrando os efeitos da devastação da natureza.
No ano passado, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas (ONU) concluiu que os três próximos anos, a partir de 2023, são cruciais para manter o aquecimento do planeta dentro da meta firmada por 196 países no Acordo de Paris. Já na última semana, um relatório publicado pela ONU alertou para o risco de uma crise global de escassez de água. De acordo com o documento, a escassez sazonal do recurso pode se tornar mais frequente na América do Sul e em outras partes do mundo, mas ainda há uma boa notícia entre todo esse diagnóstico. No dia 20 de março, o IPCC divulgou relatório síntese do seu atual ciclo de avaliações sobre o aquecimento global provocado pelo homem e os cientistas afirmam que ainda há esperança para a ação global frente à estabilização da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera, embora sejam necessários muitos esforços para evitar o colapso climático do planeta. “O Relatório Síntese mostra que, se agirmos agora, ainda podemos garantir um futuro sustentável habitável para todos”, disse o presidente do IPCC, Hoesung Lee.
Nesse sentido, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco tem acompanhado com preocupação a falta de ações efetivas específicas para revitalizar e proteger a única bacia integralmente brasileira que também já sente com muita força os efeitos desse cenário. Para o coordenador da Câmara Consultiva Regional do Submédio São Francisco, Cláudio Ademar, um dos caminhos viáveis para proteger a bacia do São Francisco, garantindo segurança hídrica e proteção desse importante curso d’água que abastece 18 milhões de brasileiros, seria considerar dentro do ordenamento jurídico do país, o rio como sujeito de direito.
Os rios e as águas, na legislação brasileira, não são considerados “Sujeitos de Direito”, que é quando cada indivíduo tem deveres e direitos protegidos por lei e que devem ser respeitados. Sem direitos, a natureza sofre constantemente a interferência do homem provocando poluição, desperdício de água e destruição.
Mas nem tudo está perdido. Algumas iniciativas em prol dos “direitos” da natureza têm surgido aqui e ali. Na América Latina, essa perspectiva de que a natureza tenha capacidade de representação judicial em defesa dos direitos dos rios, de suas bacias e de seus afluentes para que sejam protegidos, tem ganhado força.
“Considero a água um bem finito e a gente percebe que devido a ação humana, a cada dia que passa a quantidade e a qualidade da água diminui. Precisamos rever os conceitos legislativos em relação a este assunto. A água precisa ser vista juridicamente como sujeito de direito, pois apesar de, no Brasil, ser protegida por lei, ainda não é considerada como sujeito de direito. Com os recentes avanços que temos visto pelo mundo nesse sentido, acredito que podemos defender essa bandeira levando a discussão para o Congresso e para o Executivo, porque precisamos mudar o olhar da sociedade para entender que quando a água for tratada como sujeito de direito estaremos de fato protegendo o rio São Francisco e as águas do nosso Brasil”, avaliou Ademar.
O professor, doutor em direito ambiental, e brigadista florestal, Humberto Gomes Macedo, destaca que este tema marca a virada de um pensamento que valoriza a cidade ecológica tratando a natureza como ente importante da sociedade, em integração com o pensamento humano e estabelece a sustentabilidade como meta importante do ordenamento jurídico onde qualquer atividade, lei ou projeto deve ter como fundamento a proteção ecológica.
“Já no século 19, na primeira fase do direito internacional ambiental, leis conservacionistas protegiam a vida selvagem. Em seguida, veio fase da prevenção e contra a poluição marcada pela conferência de Estocolmo em 1972. A terceira fase do direito ambiental compreendeu o desenvolvimento sustentável, baseada no Relatório do Futuro Comum. Atualmente, vivemos duas fases que são a do direito humano/meio ambiente e a fase do direito internacional climático e humano, com a preocupação com o aquecimento global e a crise ecológica. Mas acredito ainda em uma sexta fase que deve ser exatamente sobre o rio como sujeito de direito, que já foi adiantada no Equador e na Bolívia com a eleição de Pachamama, ou seja, mãe terra, o planeta como fim de todos os esforços legislativos e outros. Pode-se dizer que é um novo iluminismo tratando o ser humano não mais como fim, mas como meio de proteção à natureza”, explicou.
Sujeito de Direito
No âmbito jurídico, a expressão “sujeito de direito” é utilizada para definir o cidadão e engloba não apenas pessoas físicas, mas entidades coletivas, empresas, associações civis e organizações não-governamentais. No Equador, a Constituição de 2008, logo em seus primeiros artigos, reconhece a natureza como sujeito de direito e, em 2011, o rio Vilcabamba foi tratado como sujeito de direito, após ação movida em decorrência do depósito de grande quantidade de pedras e material de escavação por conta de obra de alargamento de estrada. Na Nova Zelândia, devido a um conflito entre o governo do país e os povos Maori, que representam cerca de 15% dos habitantes do país, foi resolvido, após a edição de um ato legislativo que reconhecia a interdependência entre aqueles povos e o rio à beira do qual vivem, declarando o rio também como sujeito de direito. Na Índia, o mesmo foi feito com dois dos principais rios do país: o Ganges e o Yamuna. Na Colômbia, o mesmo aconteceu com o rio Atrato. Já na África, uma concepção similar é a do ubuntu, espécie de filosofia baseada na solidariedade e convivência harmônica, enquanto na América do Norte há a chamada jurisprudência da Terra e, na Europa, a ecologia profunda.
No Brasil, com o rompimento da barragem em Mariana (MG) em 2015, onde um mar de lama atingiu o rio Doce, responsável pelo abastecimento de diversos municípios, dois anos depois, em uma ação inédita no país, o próprio rio entrou na justiça para garantir prevenção a novos desastres e proteção à população. A ação civil pública em nome do Rio Doce foi representada pela Associação Pachamama buscando garantir maior proteção ao rio, seu entorno e a população em geral.
“O rio Doce não teve a ação continuada porque as leis brasileiras impedem que o rio seja sujeito de direito. No entanto, há discussões pertinentes nesse sentido, o que facilita a ação, e essa discussão traria a vitória de todo pensamento ecológico. Vale pontuar que os recentes acidentes, chuva, incêndios, efeitos das mudanças climáticas, já nos mostram que é urgente que os rios e outros seres da natureza sejam sujeitos de direito, afinal o direito não pode contemplar apenas o ser humano, que deve ser o meio e não o fim”, alertou Macedo.
Assessoria de Comunicação do CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Juciana Cavalcante
*Fotos: Fernando Piancastelli; Leo Boi; Edson Oliveira; Bianca Aun