O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) que vem acompanhando de perto as tramitações sobre o Projeto de Lei 4546/21, chamado de Novo Marco Hídrico, realizou, durante a tarde desta segunda-feira (04), o Seminário em Defesa da Lei Águas com o objetivo de abrir espaço para o debate sobre o assunto que tem gerado discussões em diversos âmbitos.
Essa é mais uma iniciativa adotada pelo CBHSF que já se posicionou através de Nota Pública, em defesa da Lei 9.433/1997, a Lei das Águas, regulamentando o uso da água no Brasil como um bem público. De acordo com o Comitê, a legislação corre o risco de desmonte diante da nova proposta de marco hídrico. A Nota Pública emitida pelo CBHSF foi assinada por mais de 100 entidades da bacia do São Francisco. Além disso, o Comitê também criou um Grupo de Trabalho (GT) para analisar o documento que, por sua vez, propôs a realização do Seminário como forma de abrir a discussão sobre o PL que segue em tramitação na Câmara dos Deputados.
O Seminário foi mediado pelo advogado e membro do GT Marco Hídrico, Luiz Roberto Porto de Farias, que abriu o evento, realizado de modo virtual, com o posicionamento do Comitê, através da fala do presidente do CBHSF, Maciel Oliveira. Ele destacou a importância da Lei 9.433. “O nosso Marco Hídrico é a Lei 9.433 e temos que falar essa mesma linguagem. A Lei das Águas traz grande oportunidade de gestão compartilhada, descentralizada e participativa das águas, tirando o poder do Estado, a centralização do Estado, e delegando para a sociedade civil, para o usuário e também para o poder público. É ela que, em seus princípios, deixa claro que a água é um bem público, limitado, dotado de valor econômico, ou seja, nós não podemos fugir dessa linha. Então o PL vem com arranjos, com a concepção de comercializar a água. Quando fala em outorga onerosa, fala em comercializar a água entre os usuários, quando temos no Brasil uma grande fragilidade das outorgas que ainda não foram amplamente implementadas com sistemas que devem ser monitorados com estudos técnicos. Então a nossa grande defesa é que a Lei 9.433 seja implementada em sua totalidade”, afirmou o presidente.
Seminário virtual abriu espaço para debate a respeito do Projeto de Lei 4546/21, também conhecido como o “Novo Marco Hídrico”
Estrutura do documento
Membro do GT Marco Hídrico e representante da Secretaria de Meio Ambiente da Bahia, a especialista Larissa Cayres apresentou a estrutura do documento que é composto por seis capítulos. “O primeiro capítulo tem as disposições preliminares com definições, incluindo serviços hídricos, terminologia não conhecida pela maioria dos integrantes da comunidade hídrica, ou dos principais atores envolvidos com a gestão de recursos hídricos do Brasil. O capítulo dois fala da Política Nacional de Infraestrutura Hídrica com seus princípios, diretrizes e instrumentos e, nesse sentido, quero provocar a reflexão se há de fato a necessidade no Brasil de termos uma política nacional de infraestrutura hídrica. Pesquisei muito e não localizei uma política de infraestrutura de comunicação, nenhuma política de infraestrutura de energia, tampouco para infraestrutura de política de transporte, o que me fez refletir se há necessidade de uma política de infraestrutura hídrica ou se o nosso marco hídrico, a Lei 9.433, já não é o suficiente àqueles objetivos que o projeto de lei apresenta. Os capítulos três e quatro propõem a prestação e exploração dos serviços hídricos e prestação e exploração dos serviços hídricos privados. No meu entendimento é o primeiro contraponto deste projeto de lei que afronta o grande fundamento da nossa política nacional, que prevê na Constituição a água como bem público. O capítulo cinco traz as sanções e o último capítulo fala sobre as disposições finais onde são apresentadas as propostas de alteração da nossa política nacional e onde destaco a alteração do artigo 5º da lei propondo acrescentar mais um instrumento que é a cessão onerosa, ou o que chamo de inaugurar no Brasil o mercado de água, situação que nos preocupa e altera a lógica de governança”.
O Projeto de Lei 4546/21, do Poder Executivo, cria o que chama de Programa Nacional de Eficiência Hídrica definindo os padrões de referência de consumo para diversos setores da economia e usuários, além de máquinas e equipamentos. De acordo com o Governo Federal, o projeto pretende ampliar a participação da iniciativa privada no financiamento e exploração das infraestruturas hídricas, como barragens e canais de água para usos múltiplos.
A promotora de justiça do Ministério Público, Luciana Khoury, alertou neste ponto sobre o conceito de segurança hídrica. “Importante ver que o PL chega com toda força, no sentido de passar por todas as esferas de forma relâmpago, chegando sem nenhuma tramitação social nos órgãos previstos pela legislação atual e vigente, e nas instâncias de gestão das águas, que foram legalmente e legitimamente constituídas no nosso país para discutir a gestão das águas. O PL super estimula a questão econômica, a lógica da iniciativa privada e, nesse sentido, falamos do conceito de segurança hídrica que é apresentado destoando do conceito discutido mundialmente. O documento deixa de fora aspectos fundamentais que são as reduções dos riscos para o conceito de segurança hídrica e a redução das desigualdades, que são muitas, nos aspectos de distribuição e no acesso por falta de gestão adequada”, acrescentou.
Cessão onerosa
Para justificar a cessão onerosa, o Poder Executivo alega que o setor vai demandar investimentos de R$ 40 bilhões até 2050. De acordo com o texto do PL, o detentor do direito de uso de um recurso hídrico poderá cedê-lo a outro, mediante contrato e pagamento. A cessão será regulamentada e fiscalizada pelo órgão outorgante, União ou Estado. O projeto define ainda uma nova atribuição do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que passa a analisar e aprovar os Planos de Recursos Hídricos de Bacias de rios de domínio da União, anulando o poder dos comitês de bacias federais, que até então detém a prerrogativa de aprovação.
“É extremamente necessário discutir a implementação da política de recursos hídricos e não pensarmos em uma nova lei que, inclusive, tira poderes dos comitês. O PL foi apresentado tirando o poder dos comitês de aprovar seus planos de recursos hídrico. Ora, quem conhece da realidade da bacia é o Comitê de Bacia, que conhece seus problemas, necessidades e os vivencia, sem desmerecer o CNRH, mas ele não pode decidir sobre algo que é parte da atribuição dos Comitês”, disse o presidente do CBHSF, Maciel Oliveira.
O secretário executivo do Observatório da Governança das Águas, Angelo Lima, ainda acrescentou que o PL se apresenta como retrocesso. “Demoramos muitos anos para construir a Política Nacional de Recursos Hídricos. Antes e depois do documento chegar ao Congresso foram anos de debate. A grande diferença de agora para aquele momento é que temos uma política nacional que criou um sistema com mais de 200 comitês de bacia e mais de 40 mil atores atuando na gestão de recursos hídricos, ou seja, um avanço do processo democrático no Brasil. Por isso, é muito importante que tenhamos um grande debate para mostrar que este PL volta ao Código das Águas onde era tudo centralizado pelo governo. Não podemos nos deixar enganar e permitir o desmantelamento dos processos participativos”.
O vice-presidente do Comitê, Marcus Polignano, concluiu ainda que o projeto comete equívocos e reforçou o posicionamento do CBHSF. “Não se pode chamar esse PL de Marco Hídrico. Não há nada aproveitável neste documento até porque se ele fosse bom, teria sido discutido democraticamente. O projeto comete uma série de equívocos, entre eles ser chamado de plano nacional de segurança hídrica quando temos os biomas sendo destruídos. Ao pensar que segurança hídrica é só barragem e reservatório, mostra como estão equivocados. O que nos cabe é reforçar a luta pela manutenção da Lei 9.433 e nosso repúdio total ao PL”, concluiu.
Assessoria de Comunicação do CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Juciana Cavalcante
*Fotos: Juciana Cavalcante