São Francisco sofre com ação humana

16/10/2018 - 17:52


O jornalista alagoano Anivaldo Miranda preside o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), cuja principal função é buscar soluções para sua preservação. À Painel Alagoas ele falou um pouco da situação atual do Velho Chico e como ações governamentais – ou a falta delas – têm agravado essa realidade. Com mestrado em meio ambiente pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), ele já foi secretário Municipal de Assistência Social de Maceió, secretário de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado de Alagoas e já integrou o Conselho Administrativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente representando a sociedade civil da Região Nordeste. “A morte de um rio é lenta, tortuosa, imprecisa, que a gente sabe como começa, mas dificilmente pode dizer quando termina”.
Painel Alagoas – Em linhas gerais, a situação de assoreamento do Rio São Francisco tem piorado, melhorado ou estagnou nos últimos anos?
Anivaldo Miranda – São vários os fatores que produzem o assoreamento de um rio, dentre eles a diminuição de suas vazões, processos erosivos em suas margens, a devastação de suas matas ciliares, o declínio de seus rios afluentes, a superexploração dos aquíferos que garantem o seu escoamento de base nos períodos secos e assim por diante. E todos esses fatores estão hoje presentes e se agravaram no Rio São Francisco. Além disso, quando as chuvas finalmente chegam ainda carregam excesso de sedimentos, fenômeno típico de qualquer bacia hidrográfica degradada.
Painel Alagoas – A quê o senhor atribui essa condição?
Anivaldo Miranda – Acho que já respondi a esse questionamento, mas considero interessante aduzir que o processo de assoreamento da calha do Rio São Francisco agravou-se bastante em função da estiagem que se prolonga desde 2013, o que forçou a diminuição controlada da defluência dos reservatórios hidrelétricos, notadamente do Reservatório de Sobradinho que liberava uma vazão mínima legalmente reconhecida de 1.300 metros cúbicos por segundo e agora está liberando apenas 600 metros cúbicos por segundo.
Painel Alagoas – Em qual ponto do Rio a situação é mais grave?
Anivaldo Miranda – Em qualquer rio, e dependendo do grau de ocupação e atividades humanas em seus diversos trechos, a tendência dominante é a de maior repercussão dos impactos exatamente nas regiões próximas à sua foz, uma vez que ela tende a acumular tudo de bom ou de ruim que acontece à montante do curso das águas que saem das nascentes a caminho do ponto onde o rio termina. Sendo assim, a região do Baixo São Francisco, que separa Alagoas de Sergipe, é sempre a mais comprometida.
Painel Alagoas – Até que ponto o problema do saneamento básico nas cidades ribeirinhas afeta o São Francisco?
Anivaldo Miranda – A ausência de saneamento básico na quase totalidade das cidades ribeirinhas é a principal fonte de poluição das águas do Rio São Francisco e isso causa problemas, sobretudo, para as captações das empresas estaduais ou municipais de abastecimento de água para consumo humano. Há, porém, outros impactos negativos associados ao lançamento de esgotos, a exemplo da proliferação descontrolada de plantas aquáticas que diminuem o teor de oxigênio das águas afetando a ictiofauna, por exemplo.
Painel Alagoas – A transposição das águas do São Francisco foi – e é – alvo de muitas críticas, inclusive do senhor e do CBHSF. Qual a sua avaliação deste projeto e no quê ele precisa mudar?
Anivaldo Miranda – O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco foi um dos críticos do projeto da Transposição quando ele ainda não havia saído do papel e ainda passava pela aprovação dos órgãos ambientais. Na visão do Comitê tratava-se de um projeto mal concebido, de forte inspiração eleitoreira, baseado em diagnóstico precário das bacias receptoras de suas águas e carente de interação para com as populações beneficiárias do projeto, além de ter sido feito sob premissas que ignoravam completamente o balanço hídrico da bacia doadora. Resultado: os pecados que você porventura comete durante a fase de elaboração de um projeto você paga em dobro quando de sua execução prática. Em consequência, uma obra prevista para gastar quatro bilhões e meio de reais já gastou até agora 10 bilhões de reais e poderá chegar no futuro, com a execução das obras complementares, a 20 ou 30 bilhões de reais. Outro desafio é a manutenção dos canais e demais equipamentos da Transposição que o Tribunal de Contas da União calcula em 800 milhões de reais por ano. O problema agora é saber quem vai pagar essa conta.
Painel Alagoas – Quais os potenciais de geração de renda que o Rio possui, não só para a população ribeirinha, mas para o país como um todo?
Anivaldo Miranda – O Rio São Francisco gera uma renda extraordinária para o país através das atividades econômicas que proporciona, desde a mineração e a agricultura nos seus diversos níveis e modalidades, passando pela geração de energia, pesca artesanal, aquicultura e o turismo, para citar apenas alguns dos usos múltiplos de suas águas. Além disso, há uma maneira indireta de avaliar essa renda quando lembramos que as águas do Velho Chico representam 70% da disponibilidade hídrica da Região Nordeste.
Painel Alagoas – As paisagens que o curso do São Francisco proporcionam são belíssimas, o que lhe dá grande potencial tu­rístico. Esse aspecto do Rio é bem aproveitado em sua opinião?
Anivaldo Miranda – Se por bom aproveitamento entendemos o as­pecto comercial e financeiro da ati­vidade turística podemos dizer que, ao longo dos 2.700 quilômetros da calha do São Francisco, de sua foz, no Oceano Atlântico, até suas nascentes na Serra da Canastra, em Minas Gerais, ainda há muitas belezas naturais a usufruir. Mas se a pergunta é de viés ambiental, devemos reconhecer que há muito o que fazer, em termos regulatórios, de gestão e de educação ambiental para evitar que o turismo assuma as características de mais uma atividade de teor degradante.
Painel Alagoas – Até que ponto o CBHSF tem poder de atuação na preservação do Rio São Francisco e quais as maiores dificuldade enfrentadas pelo Comitê?
Anivaldo Miranda – A ação do Comitê é bastante diversificada enquanto colegiado que trata, sobretudo, de aprovar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica como um todo e lutar pelo cumprimento dos seus objetivos e metas através da cooperação e parcerias com todos os entes públicos ou privados que usam as águas. O foco do Comitê são as ações demonstrativas que, através dos recursos oriundos da cobrança pelo uso da água bruta, posam ser replicadas em favor do aumento da quantidade e qualidade das águas. O Comitê é, por exemplo, o maior financiador, a fundo perdido, de Planos Municipais de saneamento básico. Quanto à maior dificuldade ela se configura com certeza na lentidão através das quais os estados da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco [Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Goiás e o Distrito Federal] implantam e universalizam os instrumentos da gestão hídrica. Essa ausência dos instrumentos da gestão atrapalha o Comitê e a todos que interagem com as águas do Velho Chico.
Painel Alagoas – É possível dizer em quanto tempo o São Francisco vai “morrer”, caso as ações que degradam o Rio não cessem?
Anivaldo Miranda – A morte de um rio, já tive ocasião de dizer, não é como a morte de uma pessoa. Ela é uma morte geológica, hidrológica e biológica, lenta, tortuosa, imprecisa, que a gente sabe como começa, mas dificilmente pode dizer quando termina, visto que sua agonia pode sempre ser prolongada com melhoras parciais. A vantagem, em relação à vida humana, é que o processo da morte pode, até certo limite, ser revertido e aquilo que é morte pode, no caso de um rio, ser convertido em vida desde que a luta pela recuperação hidroambiental desses ecossistemas seja encarada com determinação, conhecimento e continuidade.

Fonte: Painel Alagoas