Novos investimentos do poder público prometem mudar uma realidade histórica nos municípios ribeirinhos do Rio São Francisco: a poluição por esgoto. Em uma de suas entrevistas, nos idos de 1960, o escritor mineiro João Guimarães Rosa afirmou que gostaria de ser um crocodilo vivendo no São Francisco, que para ele era profundo como a alma de um homem: vivaz e claro na superfície, mas tranquilo e escuro nas profundezas. Hoje, cinco décadas depois de proferida, a metáfora ainda corre o risco de perder o sentido, diante da agressão diária da poluição contra o gigante que corta cinco estados brasileiros, quatro deles no Nordeste.
Opará, como o rio é chamado pelos índios, foi descoberto no ano de 1501 e sua história se confunde com a história do próprio Brasil. Ao longo de 2,8 mil quilômetros de extensão, o Velho Chico recebe água de 168 afluentes, desde a nascente, no estado de Minas Gerais, até a foz no município alagoano de Piaçabuçu, onde se encontra com o Oceano Atlântico. Em todo o percurso, entretanto, o rio vem sendo gradativamente deteriorado pela ação do homem. A degradação é tamanha que no livro “Flora das caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação”, lançado em setembro deste ano, o professor José Alves Siqueira, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), faz um alerta perturbador: caso não haja ações imediatas de preservação, a extinção do rio será inexorável.
Entre as causas da degradação, a pesquisa aponta o despejo diário de milhares de litros de esgoto sem qualquer tratamento no Velho Chico. A reportagem da Agência Alagoas viajou para regiões remotas cortadas pelo rio no estado e constatou situações preocupantes de poluição por esgoto, lamentadas pela população ribeirinha. Situações que há tempos preocupam também o poder público, que se prepara para transformar esta realidade verificada em muitas cidades, iniciando grandes obras na região: a implantação de redes de esgotamento sanitário em municípios que margeiam o São Francisco. Dentro das ações do Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do rio, a Codevasf está implantando sistemas em 12 dos 49 municípios que integram a bacia em Alagoas. Delmiro Gouveia, São Brás e Belo Monte serão os primeiros a receber as novas redes implantadas em parceria com o Governo Estadual. Os investimentos iniciais para estes três municípios, somados a Piaçabuçu e Traipu, cujos projetos estão sendo adequados pelo Estado, ultrapassam a marca dos R$ 60 milhões.
As obras vão chegar a cidades que ainda não contam com sistema público de esgotamento, como São Brás e Belo Monte, e que possuem apenas uma pequena parte da cidade com rede coletora, caso de Delmiro Gouveia, cujo sistema corresponde a apenas cerca de 10% de sua área. Este sistema foi implantado pela prefeitura local apenas no chamado Bairro Novo e a rede coletora é do tipo convencional, formada por tubos de PVC de 150 mm de diâmetro. O sistema funciona inteiramente por gravidade e despeja diretamente na estação de tratamento do sistema. A rede coletora já existente se encontra em bom estado de conservação e será aproveitada no novo sistema.
Em Delmiro, esgoto causa doenças
Vizinho de Sergipe, Bahia e Pernambuco, o município de Delmiro Gouveia nasceu como povoado de Água Branca, 256 metros acima do nível do mar. Localizado entre os cânions do São Francisco, o povoado foi elevado à categoria de município em 1952.
Como em Macondo, a cidade criada por Gabriel García Marquez em Cem Anos de Solidão, o personagem que mais tarde seria homenageado com o nome do município apavorou os sertanejos com os primeiros cubos de gelo que se tem notícia nos confins do sertão alagoano. Delmiro Augusto da Cruz Gouveia alterou a relação do sertanejo com o tempo, esticou o dia com a luz elétrica quando fundou, em 1913, a primeira hidrelétrica do Nordeste que se utilizava da margem alagoana da cachoeira de Paulo Afonso, no Rio São Francisco, para produzir energia elétrica.
O início dessa história muito se parece com o início daquela criada por García Marquez: “Uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes”, tal como os cânions do São Francisco. Pedra Delmiro, como era chamada a Macondo alagoana nos tempos de povoado, se desenvolvia na medida em que os delmirenses estreitavam a relação com o rio. Em 1914, os sertanejos daquela região passaram a receber a água do São Francisco canalizada em suas casas.
Quase cem anos depois, Delmiro Gouveia tem 48 mil habitantes, 11.176 domicílios com água canalizada e ainda sofre com problemas sanitários. “Eu acho que pra cada pessoa aqui deve ter uns 50 mosquitos, é muito mosquito e mosca então nem se fala”, avalia o agricultor Oswaldo Filho, de 32 anos, morador do bairro que recebe o nome contraditório de Ponto Chique, imerso em vulnerabilidade social e esgoto a céu aberto.
Outro problema enfrentado pela população de Ponto Chique é o difícil acesso em dias de chuva, quando o esgoto a céu aberto se mistura com as águas pluviais nas ruas. “Quando chove ninguém passa por aqui, alaga tudo. Quem tá dentro não consegue sair e quem tá fora não consegue entrar”, disse a dona de casa, Eunice Rodrigues de 44 anos.
De acordo com a Secretaria de Saúde do município, a comunidade e adjacências são acompanhadas por 117 agentes de saúde que visitam as famílias uma vez por mês. “Cada agente atende 130 famílias, que recebem noções de higiene, remédios quando necessário e toda atenção básica necessária para o mínimo de qualidade de vida”, explicou a coordenadora de atenção básica da Secretaria de Saúde, Marta Tenório.
Ainda de acordo com informações da Secretaria Municipal de Saúde, o acompanhamento realizado pelos agentes com as famílias em situação de vulnerabilidade social de Delmiro Gouveia tem reafirmado uma demanda que historicamente parece bastante óbvia na região. As doenças registradas são, em sua maioria, relacionadas à ausência de saneamento básico na região.
De janeiro a agosto de 2012, 758 casos de diarreia foram registrados em Delmiro Gouveia, como aponta a enfermeira, coordenadora da vigilância epidêmica municipal, Dayane Targino. Segundo ela, apesar do número não representar uma epidemia se comparado com o mesmo período do ano passado, é necessário lembrar que o número oficial corresponde ao número de casos registrados, acompanhados e tratados com o auxílio dos agentes de saúde, e, também, dos postos de saúde. “Mas existem os casos que não chegam até nós e são tratados de forma caseira. Esses casos ficam à margem dos nossos índices, nós não temos como garantir categoricamente que todos eles estão diretamente relacionados às questões de saneamento básico porque não existe uma pesquisa que indique isso. Mas, em contrapartida, é bastante claro que as nossas condições de saneamento propiciam a proliferação de escabiose (sarna), pediculose (piolho) e verminoses. A incidência de diarreia está atrelada as condições de higiene dos alimentos e a qualidade da água, dois fatores diretamente relacionados ao saneamento básico”, explica a enfermeira.
São Brás e Belo Monte comemoram saneamento
As pequenas São Brás e Belo Monte, também localizadas nas margens do Rio São Francisco, no sertão alagoano, têm juntas cerca de catorze mil habitantes, de acordo com o censo 2010 do IBGE. Nos dois municípios, a reportagem da Agência Alagoas presenciou cenas tristes, de crianças brincando às margens do Rio, a poucos metros de onde um canal de esgoto desembocava no leito.
O município de São Brás iniciou sua formação como um pequeno povoado de Porto Real do Colégio. Na região, conta-se que uma imagem de São Brás foi encontrada numa ilha próxima à comunidade. Depois de encontrar a imagem do santo, a população se mobilizou para construir uma capela e posteriormente a igreja matriz com o nome do santo que acabou batizando, também, a cidade. Já o município de Belo Monte começou a ser habitado a partir da instalação de uma fazenda de gado bovino. Os moradores se referiam ao local como Lagoa Funda pelo fato de existir uma lagoa de grande profundidade na região. Em 1866, Lagoa Funda foi elevada à categoria de vila e passou a ser chamada de Belo Monte.
Os dois pequenos municípios têm a suas vidas totalmente voltadas para a relação com o rio São Francisco. A água destinada ao uso doméstico, para lavar e cozinhar é a mesma água que nutre as plantações e proporciona os pescados.
“Quando eu era criança vinha com minha mãe para ela lavar a roupa aqui no rio. Eu ficava brincando na água com os meus irmãos, a gente passava tempo e não queria sair quando ela terminava o serviço e chamava a gente para casa. Hoje eu venho com meu marido, ele me ajuda a trazer a roupa, é muita roupa, são cinco crianças dentro de casa e uma aqui que vai chegar ainda”, dizia Fabiana Lima, enquanto torcia as peças de roupa recém lavadas. De acordo com Fabiana, o esgoto de casa é em sua maior parte encaminhado para a rua e apenas o esgoto originário do banheiro é encaminhado para uma fossa séptica construída na residência.
A situação do município de São Brás é semelhante. José Firmino tem um bar na beira do Rio São Francisco e, consciente sobre o meio ambiente, construiu uma fossa séptica para não precisar compor a realidade do restante da cidade e despejar esgoto no rio. “Viver no meio do lixo não tem que ser normal, ainda mais se esse lixo tá aqui na beira do rio que é tudo pra gente”, falou José Firmino, que mantém o hábito de recolher o lixo do rio uma vez por semana, sozinho.
Todas as casas da região localizadas na margem do São Francisco, no entanto, despejam o esgoto no rio. “Eu me sinto mal quando vejo esse esgoto caindo aqui, eu queria fazer uma fossa, mas é muito caro e nunca consegui”, disse a moradora Marielza dos Santos que tem o hábito de acrescentar cloro à água antes de consumir para os afazeres domésticos. “Eu faço o que posso para ninguém adoecer, sempre coloco cloro na água antes de usar para cozinhar, lavar prato. A nossa sorte é que a água do rio é corrente e leva tudo de ruim que a gente precisa despejar”, acrescentou Marielza com a esperança que o rio São Francisco seja infinito, no tempo e no espaço: “Esse rio tem muita água, acaba não. E ele tá sempre levando tudo de ruim, nossa ‘valença’ é essa”.
Governo se prepara para mudar realidade
Já está praticamente tudo pronto: depois de garantir recursos junto ao governo federal e aprovar os projetos, o Estado de Alagoas se prepara para licitar as obras de implantação do esgotamento sanitário nos municípios de Delmiro Gouveia, São Brás e Belo Monte, visitados pela reportagem. Os municípios de Traipu e Piaçabuçu, cujos projetos dos sistemas estão sendo readequados, também serão beneficiados com a parceria do Governo com a Codevasf. Os recursos, na ordem de R$ 60 milhões iniciais, foram garantidos pelo Ministério da Integração Nacional, por meio da segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Desde o ano de 2004, a Codevasf já investiu cerca de R$ 125 milhões em ações e projetos de revitalização da bacia hidrográfica do rio São Francisco, com recursos da União alocados nos Ministérios do Meio Ambiente e da Integração Nacional. Entre as ações, a Companhia está implantando sistemas de esgotamento sanitário em mais 12 municípios dos 49 que integram a sua bacia hidrográfica em Alagoas: Batalha, Igreja Nova, Carneiros, Canapi, Jaramataia, Olho D’Água do Casado, Cacimbinhas, Belo Monte, Delmiro Gouveia, Piaçabuçu, São Brás e Traipu, sendo os cinco últimos em parceria com o governo de Alagoas.
Uma das principais responsáveis pela atual política de saneamento no estado, a superintendente de Política de Saneamento da Secretaria de Estado da Infraestrutura (Seinfra), Ana Catarina Lopes, afirma que os novos investimentos que serão realizados na região do Velho Chico não são isolados e serão continuados. “Essas grandes obras vem somar aos trabalhos realizados na área de saneamento em Alagoas nos últimos anos, tanto na capital como no interior do estado. Além disso, são novas obras dentro do programa de revitalização do São Francisco, fundamentais para outros setores como o turismo, a saúde e o meio ambiente”, ressalta Ana Catarina Lopes.
À frente da Seinfra de Alagoas desde 2008, o secretário Marco Fireman esclarece que obras de saneamento são obras consideradas caras, que demandam um grande volume de recursos e auxílio do governo federal. “Municípios pobres, por exemplo, não possuem recursos disponíveis para esse tipo de investimento e até o Estado tem dificuldades”, explica Fireman. “Infelizmente, o setor do saneamento foi relegado pelo poder público durante muitos anos, até porque depois das obras concluídas os canos ficam enterrados e, para muitos, não têm valor político. Mas isto está mudando na história recente. Hoje, o governo estadual tem garantido junto à União recursos para desenvolver ações voltadas para melhoria das condições de saúde da população e o esgotamento sanitário é um pilar básico para isto, assim como para o desenvolvimento social e turístico daquela região. Além disso, investir no Rio São Francisco é investir na preservação de um dos ecossistemas mais importantes para o Brasil”, diz o secretário da Infraestutura.
Os benefícios socioeconômicos das obras de saneamento já são esperados pela população, carente de ações sanitárias, e pelas administrações municipais. Belo Monte, por exemplo, tem potencial natural para o turismo e espera que as novas obras contribuam para desenvolver o setor. “O nosso interesse é inserir Belo Monte na rota do turismo do Baixo São Francisco. Além das belezas naturais, nós temos também potencial para explorar o turismo pelo viés histórico. Belo Monte possui inscrições rupestres localizadas em pedras próximas ao São Francisco”, explicou o secretário de obras e gerente municipal de contratos e convênios, Antônio Arruda. “O tratamento do esgoto de Belo Monte é um ponto crucial para cidade, principalmente porque essa cidade depende muito do rio São Francisco para viver e se desenvolver em questões como esta do turismo, por exemplo”. Atualmente uma parte da cidade não recebe água tratada e tem o esgoto direcionado para fossas sépticas e, também, para o Rio São Francisco.
Texto: Acássia Deliê e Morena Melo
Fonte: Infraestrutura