Revista Chico nº 8: O sertão é o mundo

12/03/2021 - 9:00

Três vozes, três estilos, três histórias da diversidade cultural do São Francisco. Como escreveu Guimarães Rosa para Teobaldo, “o sertão é o mundo”.


 

A Barranqueira…

Nascida em Pirapora, Minas Gerais, Priscila Magella traz a força da música barranqueira, vestida de contemporaneidade, encarnada na beleza singular da cantora. Natural de Juazeiro, Bahia, o forrozeiro Targino Gondim segue a melhor tradição de Luiz Gonzaga. Ganhador de um Grammy Latino, em 2001, seu melhor cartão de visitas talvez seja a autoria do hit de Gilberto Gil, “Esperando na janela”. E Paulo Araújo é filho de Bom Jesus da Lapa, também na Bahia. Entre o samba de roda e a marujada, canta o cotidiano sertanejo.

Quando ainda era bem menina, Priscila Magella fugia do salão de beleza da mãe, conhecida em Pirapora (MG) como Maria do Salão, e ia para a beira do São Francisco aprender a cantar. Não tinha dinheiro para pagar aulas de voz. De vez em quando, trocava faxinas na Sala Moser, imponente conservatório da cidade, por lições. Mas seu professor mesmo era o Velho Chico. Experimentando, foi descobrindo que se entrasse no rio e deixasse só a cabeça fora d’água sua voz ganhava a melodia da correnteza. Se nadasse até as pedras, podia se ouvir no eco. Nas duchas, o ritmo mudava. “Minha maior investigação de voz foi mesmo dentro do rio”, comentou ela, que, aos 36 anos, cursa Arte Dramática na Universidade de São Paulo (USP) e escreve o roteiro do musical “Velho Chico”: “É a história de uma mulher que se apaixona pelo rio e o rio vira gente”.

Com um CD lançado, intitulado “A Barranqueira”, Priscila vive em São Paulo, mas tudo nela segue exalando o cheiro, a cor, a cadência do Velho Chico, como se encarnasse o rio, como se o rio saísse pelos poros. A voz é perfeita, elegante, afinada como a correnteza, nunca perde o tom, não erra notas. As letras, engajadas, políticas, trazendo as belezas, mas também as dores e as lutas ribeirinhas. O visual, contemporâneo, arrojado. Com os amigos David do Nascimento de Jesus e Surubim de Bigode, ambos artistas de Pirapora, o primeiro artista plástico, com representação nacional, e o outro um virtuose de várias artes, ela criou recentemente um coletivo em Pirapora para lutar contra a barragem de Formoso, projeto de instalação de uma hidrelétrica na região. No último 4 de outubro, o grupo organizou uma barqueata na cidade, para chamar a atenção para o que consideram uma obra ilegal e um crime ambiental. “Estamos correndo atrás, tentando pelas vias legais. Desde 1985 estão tentando construir essa barragem. Vamos lutar até vencer”.

O primeiro contato de Priscila com a música foi o tio, o Capitão Magella, uma lenda em Pirapora, chamado de capitão da música Barranqueira. Em 1979, ele fora um dos artistas que se apresentaram no Show pela Anistia, ocorrido no Estádio do Corinthians, em São Paulo, reivindicando a libertação de presos políticos retidos da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco. Capitão Magella subiu no palco ao lado de nomes como Belchior, Fagner, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Danilo Caymmi, Sá e Guarabyra. Aos 38 anos, morreu – ou encantou, como Priscila gosta de falar: “Saiu com amigos numa expedição pelo São Francisco e, no caminho, pulou no rio para salvar uma moça que se afogava. Foi de encontro a um banco de areia”, contou. “Eu cresci com minha mãe dizendo que o São Francisco era perigoso. A gente não podia ir lá. O Velho Chico era um pecado”. Um pecado que sempre fez questão de cometer: “Todas as tardes eu fugia do salão e ia para o rio”.

Com essa atração pelo pecado, Priscila se apresentou num palco pela primeira vez aos 15 anos, num festival local. Depois, cantou com todos os mestres dos Vales do São Francisco e Jequitinhonha, como Paulinho Pedra Azul e Marku Ribas. “Só não cantei em velório”, brincou ela, que, em 2007, se mudou para Belo Horizonte: “No final de 2008, voltei para Pirapora, precisava buscar minha essência. Fiquei quatro anos num mergulho de profundidade no Rio São Francisco, tentando compreender e trazer para minha música essa essência. Em 2013, lancei meu CD. Agora, estou estudando em São Paulo e escrevendo um musical para esse mestre, o Velho Chico”.

 

O cancioneiro….

Aos 14 anos, Paulo Araújo ganhou da mãe um violão. Havia pedido uma bicicleta, mas dona Maria Toledo enxergou mais longe. A família vivia, então, numa casa na rua Monsenhor Turíbio, no centro de Bom Jesus da Lapa, cidade apelidada por Euclides da Cunha de Meca dos Sertanejos. O fundo da casa de seu Delcleciano Toledo, o patriarca, dava para o morro sagrado do Bom Jesus, uma formação calcária que abriga o impressionante e belo templo, destino dos romeiros que todos os anos abundam na cidade baiana. Dos benditos e ladainhas, passando pelas cantigas de cego, cantos das lavadeiras e pregões populares, o menino Paulo cresceu captando os sons da fé, na incessante algaravia dos peregrinos.

“Minha mãe ainda mora no mesmo lugar, a uns 100 metros do Tamarindo, um braço do Rio São Francisco. Para lá eu fugia para ter calma. Lá aprendi a nadar, a pescar com o meu pai”, contou ele.

Em 2016, Paulo Araújo ganhou o Brasil, com a canção I-Margem, que integrou a belíssima trilha sonora da novela “Velho Chico”, da TV Globo. Sua carreira artística, no entanto, começara já nos primeiros acordes naquele violão que a mãe lhe presenteou. Uma amiga lhe passou as primeiras notas musicais. Depois, foi discípulo do mestre Paulo Gabiru, um paulista radicado em Bom Jesus da Lapa, que espalhava pela cidade suas canções, bebendo sempre no estilo regional do médio São Francisco. “Samba de roda, Marujada, ele trazia todo o eixo cultural e popular local, em letras que narravam o nosso cotidiano”, comentou Araújo. “Na juventude, eu tocava nos bares da cidade. Com o desenrolar do tempo, fui me profissionalizando. Passei a tocar nos festivais. Fomos espalhando as nossas melodias e nossas histórias”.

Entre as influências ele cita nomes como Alceu Valença e Zé Ramalho. Sua carreira profissional é marcada pela criação do grupo “Morão di Privintina”, com o poeta e parceiro musical João Filho, em 1998. Com este, compôs músicas celebradas, como “I-Margem”, “Nobre Barranqueiro” e “Tempo de Perau”, que integram o álbum “Cama de Quiabento”. A mistura das sonoridades do Rio São Francisco e do sertão catingueiro ao rock é a marca registrada do grupo, que lançou recentemente “Janela do Ermo”. Além da arte, Araújo também dedica tempo à militância em prol da revitalização e preservação do São Francisco, o rio que, afinal de contas, compõe a sua história. “Eu sempre acreditei no belo, no majestoso. Sempre que posso dou um pulinho na margem. De vez em quando navego. Todos os dias eu peço permissão de viver para o Velho Chico”.

“Eu sempre acreditei no belo, no majestoso. Sempre que posso dou um pulinho na margem. De vez em quando navego. Todos os dias eu peço permissão de viver para o Velho Chico.” Paulo Araújo, o Paulão

 

O forrozeiro…

O Brasil inteiro cantou junto: “Tá me esperando na janela, ai, ai. Não sei se vou me segurar”. Pela canção, eternizada na voz de Gilberto Gil, o baiano de Juazeiro, Targino Gondim, levou um Grammy Latino, em 2001. E “Esperando na Janela” foi a música mais executada no Brasil de 2004. Carregando a sanfona – e a herança de Luiz Gonzaga, Targino se tornou sinônimo de arrasta-pé, de rodopiar nas pistas, de músico que vem revolucionando o forró – e não só pela habilidade com que maneja o instrumento. Com 28 discos gravados, ele capitaneia o mercado forrozeiro no país, uma espécie de “embaixador” da sanfona.

Seu nome está à frente na produção de diversos festivais na Bahia e também em outros estados, como o Festival Internacional da Sanfona, que reúne em Juazeiro sanfoneiros do mundo inteiro. Nos seus discos, há sempre participações de músicos celebrados, como Zeca Baleiro, Gilberto Gil, Fagner, Carlinhos Brown, Moraes Moreira, Ivete Sangalo e até o moderno Baiana  System.

Targino mudou-se para a cidade de Juazeiro na Bahia, aos quatro anos de idade e, oito anos depois, já se apresentava em shows pelo sertão. A primeira vez que o Brasil ouviu a sanfona de Targino foi em 1994, quando mostrou na televisão “Até Mais Ver”. Mas a fama mesmo só veio quando foi descoberto por Regina Casé, com o Brasil Legal. Daí, já subiu até mesmo no palco do “Rock in Rio”.

Targino Gondim é forrozeiro e natural de Juazeiro (BA)

 


 

Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Karla Monteiro
Fotos: arquivo pessoal Priscila Magella,
Paulo Araújo e Targino Gondim