Mar de lama gerado pelo rompimento da barragem Fundão, em Mariana, considerado o maior desastre socioambiental do país no setor da mineração. Rio Doce em Conselheiro Pena / MG
Em agosto de 2018, durante o XX Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (ENCOB), representantes de CBHs de todo o país discutiram o impacto de grandes tragédias ambientais nos recursos hídricos. Em foco Barcarena, Mariana e Correntina.
Centenas de quilômetros distantes uma da outra, Correntina (BA), Barcarena (PA) e Mariana (MG) têm em comum o mesmo triste roteiro: a abundância de riquezas naturais, a exploração descuidada destas, a tragédia ambiental. São três cidades traumatizadas, tentando reconstruir tudo, da estrutura econômica às relações sociais feridas pelo caos. Pela primeira vez, o XX Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas – ENCOB debateu o impacto das catástrofes que colocam em risco o uso da água no Brasil. O evento reuniu representantes de bacias de todo o país, entre 20 e 24 de agosto, em Florianópolis (SC).
“A crise hídrica é socioambiental e planetária, mas as pessoas não estão sofrendo o seu impacto de maneira igual”, observou a promotora de justiça, do Ministério Público da Bahia, Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco (NUSF). “Há uma injustiça ambiental e é sob essa lógica que temos que enfrentar a crise”.
Durante o debate, o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, Anivaldo Miranda, foi categórico: “O Brasil não pode se dar ao luxo de ter um acidente ambiental de proporções planetárias a cada ano”.
Mariana
No dia 5 de novembro de 2015, há exatos três anos, a pacata Mariana, a primeira capital de Minas Gerais, distante 118 quilômetros de Belo Horizonte, ganhou o noticiário mundial. Nunca se havia visto nada igual. Por volta das três da tarde, o rompimento da barragem de Fundão, operação conjunta das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, cuspiu um tsunami de lama: 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos, uma mistura pastosa e avermelhada de rejeitos de minério de ferro.
O primeiro povoado no caminho era Bento Rodrigues, pequeno e paradisíaco distrito de Mariana, cercado de montanhas e cortado pelo Rio Gualaxo: 19 pessoas morreram. Do vilarejo centenário, onde fora erguida a primeira igreja de Minas, não sobrou nada. Sem sistema de alarme, os moradores se salvaram com a ajuda do divino – e a colaboração mútua. Dali, a lama seguiu serpenteando, acompanhando o curso do Gualaxo até desaguar no Rio Doce. O rastro da destruição ambiental e social até atingir a foz, em Regência, no Espírito Santo, é incalculável. A tragédia ceifou vidas, matou a história de localidades destruídas, contaminou a água, matou a fauna, a flora, o turismo, os meios de sobrevivência.
Após o leite derramado, legando ao Brasil um dos maiores crimes ambientais do mundo, um Termo de Transação e Ajustamento de Contas (TTAC), assinado entre a Samarco e suas controladores, Vale e BHP, com a União e diversas autarquias federais e estaduais, criou a Fundação Renova, responsável pela reparação dos danos. As ações passaram a ser definidas pelo Comitê Interfederativo, que reúne também órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a Agência Nacional de Águas (ANA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Perdas e danos
Como calcular o incalculável? Talvez esse seja o maior desafio da Fundação Renova. No aniversário de três anos da tragédia, os moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, os dois povoados inteiramente devastados, ainda vivem em lares improvisados no município de Mariana, aguardando o reassentamento. A nova Bento Rodrigues já está em construção, com previsão para a entrega das casas em 2019. Os moradores de Paracatu de Baixo acabaram de aprovar o terreno e o projeto urbanístico do novo povoado.
Ao longo do Rio Doce são inúmeros os impactos: pescadores que não podem pescar, agricultores que não podem plantar, ribeirinhos sem água, lugares turísticos que não mais recebem turistas, comerciantes arruinados. Ainda sem um laudo definitivo, a água do Doce segue sob suspeita, com o consumo e a pesca proibida. Os atingidos sobrevivem com cartões de auxílio financeiro, pago mensalmente. Até agora, poucos foram indenizados. O processo de indenização é complexo e se arrasta, com avaliação caso a caso.
Dos R$ 11,1 bilhões previstos até 2030 no orçamento da Fundação, R$ 2,5 bilhões foram gastos. Além de um processo criminal contra 22 pessoas, que está paralisado por ordem judicial, há ao menos outros 74 mil em andamento, além de uma ação civil pública que reúne os atingidos em Bento Rodrigues. A previsão de recuperação total dos estragos ambientais é 2032. A Renova cercou 511 nascentes na Bacia do Rio Doce e promete recuperar em dez anos, conforme prazo fixado pelo TTAC, 5 mil nascentes.
“O programa de nascentes está caminhando bem”, conta a bióloga e presidente do CBH do Rio Doce, Lucinha Teixeira. Segundo ela, a valorização da participação do Comitê nas decisões e o fortalecimento do sistema são desafios importantes para se alcançar os objetivos de recuperação. “O Doce é considerado hoje o rio mais monitorado do Brasil. Temos que aproveitar e fazer agora a revisão do plano de recursos hídricos. A recuperação da bacia apenas vai acontecer se a gente empoderar a população e os Comitês”.
Manifestação popular em Correntina.
Correntina
No dia 2 de novembro de 2017, feriado de finados, na cidade de Correntina, oeste da Bahia, mais de 500 pessoas invadiram e depredaram a fazenda Rio Claro, propriedade de uma empresa agrícola, a japonesa Igarashi. Nos vídeos que ganharam as redes sociais, viu-se a população incendiar galpões e derrubar postes de energia. Poucos dias depois, no dia 11 de novembro, 12 mil moradores, desta vez pacificamente, tomaram as ruas do município de 33 mil habitantes. O motivo era um só: a guerra pela água.
O conflito se arrasta pelo menos desde 2015, quando o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Corrente expediu uma deliberação para que não houvesse novas concessões para uso de recursos hídricos da bacia. Em novembro do ano passado, o Ministério Publico Estadual (MP-BA) recomendou ao Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) a suspensão das concessões de outorgas para grandes empreendimentos.
“Já constatamos que há empreendimentos que, com 12 bombas de captação de água ligadas por 12 minutos, reduzem o nível de água do rio em 15 centímetros”, afirmou a promotora de justiça, Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa do São Francisco, do Ministério Público do Estado da Bahia. “Não é possível continuar com a quantidade de captação de água na bacia do Corrente hoje”.
Foi nos anos 70 que começaram a chegar à região os grandes empreendimentos agrícolas. Entre eles, a japonesa Igarashi. Segundo os cálculos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Igarashi usa sozinha 182.203 m³ de água por dia, autorizados para as fazendas Curitiba e Rio Claro. O volume abasteceria 6.600 cisternas de 16 mil litros diariamente. O sistema de irrigação nas duas fazendas possui, ao todo, 32 pivôs para captação de água do Rio Arrojado.
O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), proposto pelo Ministério Público da Bahia, no final de 2017, ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), marca o capítulo mais recente desta luta. São obrigações propostas: a conclusão dos estudos para elaboração do Plano de Bacia Hidrográfica para o Rio Corrente; a suspensão de novas outorgas de direito de uso de água, sejam superficiais ou subterrâneas, até a aprovação pelo Comitê do Plano de Bacia; a realização de um cadastramento para o uso dos recursos hídricos na Bacia do Rio Corrente e do Aquífero do Urucuia e o monitoramento de vazões, entre outras. Segundo relatório da Agência Nacional de Águas (ANA), a irrigação é responsável pelo consumo de 72% da água no Brasil.
Barcarena
Em fevereiro, Barcarena, no Pará, um lugar cercado de praias de areias brancas e coqueirais, distante 15 quilômetros de Belém, foi palco de mais um crime ambiental. Fotos aéreas registraram o vazamento de rejeito de bauxita em uma das barragens da mineradora Hydro Alunorte, de origem norueguesa. Embora a empresa tenha negado o vazamento, um laudo do Instituto Evandro Chagas (IEC) confirmou a contaminação da água por metais pesados, como cromo, chumbo e níquel. Segundo o IEC, a Hydro Alunorte teria feito uma ligação clandestina para eliminar os efluentes, causando o dano. Estima-se que cerca de 50 mil pessoas tenham sido impactadas.
Ao longo dos últimos 15 anos, Barcarena vem sofrendo sucessivos ataques. A média é de um acidente com grave impacto ambiental a cada nove meses. A trágica história remonta aos anos 80, quando empresas de exploração mineral começaram a se instalar por lá. Em operação há duas décadas, a Hydro Alunorte é recorrente, com histórico de crimes ambientais na região sem nunca ter pagado indenizações aos atingidos. As multas somam 17,1 milhões. A empresa segue recorrendo na justiça. O último vazamento está sendo investigado pelo Ministério Público do Estado do Pará e Ministério Público Federal.
“As indústrias se implantam, fazem seus grandes projetos de geração de riqueza para o Brasil, para o Estado, para os investidores, mas a população que vive no entorno está cada vez mais pobre e desassistida”, denunciou o presidente do Instituto Barcarena Socioambiental, Paulo Feitosa, durante o encontro em Florianópolis: “As pessoas morrem muito de câncer ou por insuficiência respiratória. Um médico cancerologista disse que encontrou em Barcarena uma variedade muito grande de tipos de câncer”.
A Bacia do Rio Pará não conta com Comitê de gerenciamento, conforme prevê o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. “Nós que somos nativos desta terra não temos como fazer nada porque as leis favorecem as indústrias e o poder econômico. Nosso apelo é para que as autoridades e Comitês possam olhar para o povo das águas”, denunciou Feitosa.
Barragem de rejeito da mineradora Hydro Alunorte em Barcarena no Pará
O passo a passo da tragédia
17 de fevereiro: o MPPA recebe denúncias de moradores de Barcarena de que a água da chuva que se acumulou em diferentes pontos da cidade estava em tom vermelho. A suspeita era de vazamento de bauxita das operações da Hydro Alunorte, que atua na região desde 1995.
18 de fevereiro: fiscais da Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Sesma) inspecionam a mineradora e informam que não houve vazamento. Mas notificou a empresa por verificar falhas no sistema de drenagem pluvial. O Instituto Evandro Chagas (IEC), acionado pelo Ministério Público do Estado e pelo Ministério Público Federal, coleta amostragens de águas e efluentes.
21 de fevereiro: a Câmara dos Deputados cria uma comissão para averiguar o possível rompimento da barragem, com apoio técnico do Ministério do Meio Ambiente.
22 de fevereiro: o IEC divulga o resultado do laudo. Os índices de sódio, nitrato e alumínio estão acima do permitido. O PH da água está alterado, atingindo o nível 10. A análise revela ainda um alto teor de chumbo, que, com o consumo contínuo, pode gerar câncer. A perícia flagra um duto clandestino na mineradora que conduzia resíduos poluentes para um igarapé.
23 de fevereiro: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA) pede a intervenção judicial na Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, com o afastamento do secretário do Meio Ambiente, Thales Belo, e do secretário adjunto de mineração. Ministério Público do Estado do Pará e Ministério Público Federal recomendam o embargo imediato de uma das bacias de rejeitos da Hydro Alunorte. Também é recomendado o fornecimento de água para as comunidades atingidas.
*Texto: Ana Claudia Araújo
*Fotos: Leo Mérçon (Últimos Refúgios) e Cícero Pedrosa Neto