Projeto de lei que institui novo marco dos recursos hídricos abre brechas para a privatização da água, além de engessar a gestão do setor, podendo trazer sérios prejuízos para a população mais vulnerável
Ambientalistas, parlamentares, especialistas em recursos hídricos, acadêmicos e entidades diversas da sociedade civil tentam desarmar uma grande “bomba relógio” que foi montada no Congresso no final do ano passado. Trata-se do Projeto de Lei nº 4.546/21, do Poder Executivo, que institui uma Política Nacional de Infraestrutura Hídrica, revogando a atual legislação sobre o tema.
Na prática, o texto – que tramita na Câmara – atualiza as regras para exploração e prestação dos serviços hídricos no Brasil, mas está sendo visto como um “desmonte” da regulamentação existente hoje, deixando-a mais engessada, com aniquilamento das decisões obtidas com apoio da população. Além disso, retira da água o papel de “bem totalmente público” no país.
Elaborada pelo Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), a proposta vem sendo chamada pelo governo federal de “novo marco hídrico”, mas na avaliação de especialistas comprometidos com o setor, apresenta muitas falhas. Foi produzida sem discussão popular e tem, por trás, um problema que pode ser muito sério: a privatização da água. Prevê instrumentos para definir padrões de referência de consumo para os diversos setores da economia e usuários, além de máquinas e equipamentos, à semelhança do que acontece no setor elétrico.
Para o governo, a nova política demandará investimentos da ordem de R$ 40 bilhões até 2050, liberados por meio de parcerias entre Executivo federal e iniciativa privada. Além disso, favorecerá o “gerenciamento eficiente da água no Brasil”, principalmente em bacias críticas, e ampliará a participação da iniciativa privada no financiamento e na exploração das infraestruturas hídricas, como barragens e canais de água para usos múltiplos. Para acadêmicos, especialistas e representantes do setor, contudo, não é bem assim.
O principal instrumento da nova política serão os chamados Plano Integrado de Infraestruturas e Serviços Hídricos e o Plano de Gestão de Infraestrutura Hídrica. O primeiro terá de estabelecer um planejamento de infraestruturas e serviços hídricos ao longo de 30 anos – a ser elaborado pelo MDR em parceria com governos estaduais. Precisará apresentar um inventário nacional de todos os reservatórios disponíveis para os diversos usos da água (como geração de energia, irrigação e abastecimento urbano), adequá-los à demanda atual e às necessidades futuras para que esses dados possam alimentar o Sistema Nacional de Informações sobre Infraestruturas e Serviços Hídricos. O segundo plano ficará responsável pelo gerenciamento de uso de cada infraestrutura hídrica do país e estabelecerá parâmetros de operação.
É aí que começa um dos grandes problemas, vez que um dos pontos mais polêmicos do PL está na criação, determinada no texto, da cessão onerosa. Da forma como se encontra a matéria, o detentor do direito de uso de um recurso hídrico (por exemplo, um açude ou lago) poderá cedê-lo a outro, mediante contrato e pagamento. E essa cessão será regulamentada e fiscalizada pelo órgão outorgante (União ou estado).
Enquanto a questão é vista como “perigosíssima” por profissionais do setor, o governo argumenta a necessidade de cessão onerosa como “uma forma econômica de otimizar o uso da água em situações de escassez, principalmente em locais sem condições de atender todas as demandas”. Outro item do PL que também tem levado a críticas é a mudança da responsabilidade para análise de planos de recursos hídricos de bacias de rios de domínio da União.
A proposta retira o poder dos Comitês de Bacias federais, que atualmente são os que aprovam tais planos, e repassa a missão para o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH).
Mobilizações
Desde dezembro, mais de 100 entidades, organizações não-governamentais (ONGs) e personalidades diversas estão se mobilizando contra a matéria. Inicialmente, eles promoveram um abaixo-assinado em defesa da Lei nº 9.433/97, que estabeleceu a Política Nacional de Recursos Hídricos (em vigor atualmente) e pediram que a elaboração da proposta fosse debatida “de forma democrática, com transparência e tempo privilegiado para ser enviada ao Legislativo”. Mas não foi o que aconteceu.
“É uma reforma preocupante. A população corre risco”, alertou o geógrafo Wagner Ribeiro, professor de Geografia do programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP). Como se não bastassem as mudanças em si ele criticou o esvaziamento da possibilidade de diálogo com a população, já que será retirada dos Comitês de Bacias Hidrográficas a capacidade de intervenção.
“O Conselho Nacional de Recursos Hídricos, único órgão que será mantido, não tem representação dos estados brasileiros, ao contrário dos Comitês, formados também pela sociedade civil e pelos municípios que compõem cada bacia”, explicou. De acordo com Ribeiro, os brasileiros estão assistindo a uma grande centralização em gestão de água. Segundo ele, o que está em jogo “é a possibilidade de quem detém a outorga da água hoje poder oferecer o uso do recurso para quem pagar mais”.
O especialista lembrou que o modelo é um pouco parecido com o que foi adotado pelo Chile e tem sido objeto de muitas reclamações pela população daquele país. “Imagine uma situação de escassez. Só quem puder pagar mais vai garantir o acesso à água e obter o que está na própria Lei nº 9.433, que é a garantia da dessedentação humana e de animais”, ressaltou.
Ribeiro também viu como desconhecimento por parte dos elaboradores da proposta uma das justificativas de que a mudança vai proporcionar segurança hídrica às regiões mais deprimidas do semiárido. “Tomemos como exemplo uma empresa de bebidas, qualquer que seja. Ela tem uma necessidade fundamental de água e pode eventualmente pagar mais pela água que uma pequena prefeitura que não tenha capacidade de arrecadação e uma concessão de água”, afirmou.
“Essa prefeitura não vai conseguir concorrer com uma empresa dessa ordem. E poderemos vir a ter essa grande empresa captando água para manter sua produção de um lado, e de outro, uma população desassistida para o uso fundamental da água”, informou. “De um modo geral, a impressão de que o governo federal passa é que pretende repetir o que também foi feito com o marco do saneamento básico do país, elaborado sem participação democrática”, acrescentou.
Parecer negativo
Em outra frente, um parecer elaborado por organizações técnico-científicas, inclusive representantes da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), destacou que o processo de construção da proposta deveria ter sido mais participativo e que alguns pontos precisam ser devidamente aprofundados porque impactam na política atual de recursos hídricos.
“A cessão onerosa de direito de uso equivale a um mercado de água, pode criar profundas desigualdades no acesso à água e exigirá grande ação do Estado para sua regulação. Ou seja, impactará fortemente o processo de alocação da água e dificilmente trará os benefícios anunciados com o envolvimento da iniciativa privada”, enfatizou o documento.
Na mesma nota, as entidades acentuaram que “a experiência internacional evidencia sérias distorções dos mercados de água quando não há forte regulação do Estado; ou seja, além de aumentar sobremaneira o risco de desigualdade e injustiça no acesso à água (em função do poder econômico mais forte, assimetria de informações etc.), a cessão onerosa não diminuirá custos para a sociedade.
“A ABES reconhece a necessidade de melhorias na política e de implantação efetiva dos seus instrumentos de gestão em todo o território nacional, mas isso tem que acontecer com a construção das melhorias por todos os importantes atores do setor”, frisou o documento em outro ponto.
Nota dos Comitês de Bacias
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), em conjunto com o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) e outras mais de cem entidades divulgaram nota contrária à proposta. Na avaliação dessas entidades, o texto “foi elaborado de forma antidemocrática, uma vez que não passou por discussão em nenhuma instância dos Comitês de Bacias Hidrográficas federais e estaduais, tampouco no Conselho Nacional de Recursos Hídricos”.
Além disso, consiste num projeto “que impacta substancialmente a gestão das águas do país”. “Apresenta inconsistências técnicas e jurídicas por não apresentar regras claras que possam viabilizar as mudanças sugeridas, gerando preocupante insegurança por privilegiar o interesse privado em detrimento do interesse geral e público”, diz o documento.
“Resgate”
Deputados da base do governo que defendem o PL afirmaram que ele “resgata o papel dos recursos hídricos no desenvolvimento do Brasil”, conforme disse o deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES). “A cada dia mais a gente percebe que, ao longo da história, a infraestrutura brasileira não levou em consideração o percurso, o circuito natural das nossas águas, assim mesmo como seu uso”, afirmou ele, para quem a proposta beneficia o semiárido, “que vai dispor de instrumentos para gerir as suas águas”.
O coordenador da Frente Parlamentar Mista em Prol do Semiárido, deputado General Girão (União-RN) é outro defensor da matéria. Para ele, as ações de infraestrutura e de governança previstas no novo marco legal são “uma oportunidade para a região Nordeste, que poderá ter um melhor gerenciamento das suas bacias, alavancando a produção agrícola”. “Além de termos o sol e o solo, temos e teremos as melhores condições logísticas para que a produção de alimentos possa escoar para os maiores mercados consumidores de alimentos do mundo”, afirmou.
Ex-ministro do Desenvolvimento Regional (deixou o cargo em abril para ser candidato ao Senado nestas eleições) e coordenador do grupo que elaborou o PL, Rogério Marinho, contesta as críticas e tem afirmado que a proposta é “moderna, indutora de investimentos para o setor e vai garantir segurança hídrica, principalmente nas regiões que mais sofrem com a falta de água”.
“Chegou a hora de modernizar essa legislação, trazê-la ao tempo presente, permitir que outros atores se associem nesse desafio, que é deste país e do mundo”, disse. O argumento dele é que o setor hídrico precisa de investimentos da ordem de R$ 40 bilhões até 2050, em projetos como construção de barragens, canais e adutoras. E o poder público não consegue suportar essa demanda sozinho. “Para cada R$ 1 investido no aumento da segurança hídrica, estima-se que R$ 15 são gerados em benefícios econômicos”, frisou.
A fala do ministro, no entanto, não convenceu os que acompanham há décadas a atual política. “É uma proposta que coloca em risco o direito humano fundamental de acesso à água. Se for aprovado, favorecerá o domínio das águas pela força da riqueza e aumentará a exclusão, afirmou o sociólogo da Universidade de Brasília e estudioso da gestão de recursos hídricos no Brasil, Fernando Siqueira.
Mudanças climáticas
Para o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), que atua na Câmara no setor de Meio Ambiente, a proposta precisa ser rediscutida no Legislativo. “As mudanças climáticas vão fazer com que a gente tenha períodos de seca cada vez mais prolongados e de chuvas muito intensas cada vez maiores, como já estamos vendo. Vamos precisar ter um programa grande de recuperação das nascentes, recuperar áreas de mananciais que estão ocupadas, retirar as famílias que moram nessas áreas por meio de ações técnicas, sociais e programas habitacionais. E o PL, da forma como se encontra, é muito preocupante”, afirmou.
No âmbito da Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia da Câmara, o presidente, deputado João Daniel (PT-SE), já adiantou que trabalhará para que, ao menos no colegiado, a matéria não tramite de sopetão: vai ouvir os integrantes dos Comitês de Bacias Hidrográficas e órgãos gestores de recursos hídricos para saber mais detalhes sobre a polêmica. “Quero o tema bem debatido e tentaremos evitar que a ‘orientação política’ do governo para o meio ambiente, que tira a proteção das populações indígenas, dos posseiros e das comunidades tradicionais prevaleça nessa questão específica”, frisou.
O presidente do CBHSF, Maciel Oliveira, adotou o mesmo tom. “Esse projeto, na verdade, destrói tudo que foi construído nos últimos anos. É o caos. Todo o direito que a sociedade (comunidades, empresas, municípios e estados) tinha para decidir sobre o uso da água será jogado no lixo”, acentuou. De acordo com ele, o PL abre tantas brechas que um empresário rural, por exemplo, pode pedir uma outorga (direito de uso) de 80m³ de águas de determinado rio para uso próprio e ‘revender’ como bem quiser o excedente.
Regulamentação dos recursos hídricos no Brasil:
01
Até 1970: o que existia no Brasil era um modelo de administração de recursos hídricos marcado por decisões centralizadas e verticais de comando e controle.
02
A partir de 1980: houve uma evolução global apoiada por entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial e a União Europeia, que estabeleceu um consenso para a gestão de recursos hídricos, sob o princípio de que “a escassez e o mau uso da água doce são fatores de grande e crescente risco ao desenvolvimento sustentável do meio ambiente.”
03
1988: a partir da discussão no país sobre a governança integrada das águas, ligada à governança ambiental, a Constituição Federal consagrou, no seu artigo 21, como obrigação da União “instituir um sistema de governança de recursos hídricos”. A mesma Constituição consolidou que “todas as águas brasileiras são um bem público inalienável, inexistindo a sua propriedade privada”.
04
1997: foi sancionada a Lei Federal nº 9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh). A lei estabelece que a gestão descentralizada e participativa dos múltiplos usos das águas deve ser democrática e organizada por bacia hidrográfica, definida como a unidade de planejamento e gestão de recursos hídricos. Dentro dessa concepção, foram montados 165 Comitês de Bacias Hidrográficas, com participação do poder público, dos usuários e da sociedade civil.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Hylda Cavalcante
Ilustração: Albino Papa