Na manhã do dia 03/04 (domingo), o volume útil final da represa de Três Marias, no Alto-São Francisco, registrava índice de 94,3%. No mesmo dia, a poucos quilômetros do vertedouro da usina, os pescadores e guias turísticos Milton Odair (Biguá) e Norberto Antônio dos Santos, o senhor Norberto, recebiam a informação de que uma grande quantidade de peixes mortos estava descendo o rio. Com a notícia, os dois pescadores foram até às margens do rio e constataram o fato. Entraram no barco e navegaram por cerca de quatro quilômetros até as proximidades do vertedouro.
“Foram quatro quilômetros de puro peixe morto, maioria Mandi, mas teve Curimba, Piau, Douradinhos, Mandi-branco e Traíra, alguns peixes de escamas que morreram também. É muito triste e revoltante”, relata Biguá. Segundo o pescador, a quantia estipulada que desceu o rio foi algo em torno de 12 a 15 mil quilos de peixes. “Mas a estimativa é maior porque a maioria foi retirada pelas máquinas da empresa”, acrescenta.
Durante o ocorrido, os pescadores atribuíram a responsabilidade do acidente à Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), responsável pelas operações da Usina Hidrelétrica de Três Marias. Procurada pela reportagem do CBHSF, a assessoria de imprensa da Cemig explicou, em nota, que na noite anterior (02/04), houve a chamada ocorrência de “trip” na unidade geradora 05, levando a descida automática das grades de proteção, para evitar a entrada de peixes. A empresa informou ainda que, devido às condições técnicas e o fato de a operação ter sido realizada em período noturno, o retorno imediato da máquina não foi possível, sendo então mantida a condição de grades até a manhã do dia 03/04 (domingo).
A informação fornecida pela empresa destaca ainda que, no momento da operação, havia uma enorme quantidade de peixes no canal de fuga e, mesmo com a descida rápida das grades, houve a entrada de peixes no tubo de sucção. “Dada a baixa qualidade da água verificada neste período, verificou-se, após o retorno da unidade geradora com a retirada das grades, a mortandade de peixes, totalizando 655,9 kg, majoritariamente da espécie mandi”, afirmou, em nota, a assessoria de imprensa da Cemig. A Companhia informou ainda que os peixes recolhidos mortos no canal de fuga e a jusante da usina, em vistorias realizadas do dia 03 até o dia 06/04, foram pesados e enterrados, após confirmação pela Polícia Militar de Meio Ambiente (PMMA).
Parada não programada em unidade geradora da Usina de Três Marias levou à mortandade de peixes
A responsável pela operação da Usina de Três Marias ressaltou que o ocorrido foi um evento isolado, decorrente de uma parada não programada. “Qualquer parada das máquinas para manutenção programada foi suspensa neste período, como forma de se evitar acidentes com a ictiofauna. No entanto, eventos de paradas não programadas, como o observado, podem acontecer”, informou.
A falta de oxigenação dos peixes também seria outro motivo, apontado pelos ribeirinhos, como causa do acidente. Nesse sentido, a Cemig informou que o vertedouro da UHE Três Marias foi operado durante o período de cheia do Rio São Francisco, verificado no período de janeiro a março/2022, visando, segundo a empresa, a manutenção do nível do reservatório e preservando o agravamento de eventos de cheias a jusante, notadamente na cidade de Pirapora/MG. “Com a diminuição da vazão afluente, houve o fechamento do vertedouro e manutenção do nível pela defluência das unidades geradoras”, acrescentou.
A Cemig também explicou que desde antes do fechamento do vertedouro, em meados de janeiro/2022, vêm observando baixa no oxigênio dissolvido a jusante da casa de força, provavelmente em função da inversão térmica do reservatório. “A Cemig está fazendo o acompanhamento sistemático da qualidade da água para tomar medidas protetivas em relação aos peixes”, frisou.
O pescador profissional Leonardo Lucas Ferreira, estava próximo ao local do acidente. Segundo ele, havia grande quantidade de peixes mortos, com predominância da espécie Mandi-amarelo, “mas apareceu Dourado e Curimba em menor quantidade e de pequeno porte”, completa.
Leonardo compartilha da mesma sensação de indignação e tristeza que o guia de pesca, “Biguá”. “Fico muito triste em saber que aqueles peixes não têm proveito nenhum para as nossas famílias e nosso sustento e de todos que tem sua subsistência no Rio São Francisco. Os peixes já estavam em estado de putrefação”, lamenta. O pescador também aponta a empresa como responsável pela mortandade de peixes todos os anos. “Dessa vez, não sei se foi uma manobra errada na usina, que provocou a entrada em massa dos peixes nas máquinas”, ressalta.
Ocorrido assustou pescadores da região, que verificaram a mortandade de diversas espécies de peixes
O fenômeno da arribação
O pescador chama a atenção para outra questão: a reprodução dos peixes. Segundo Leonardo, os órgãos fiscalizadores precisam agir de maneira mais rigorosa, porque é um local estratégico onde se concentra um grande fluxo de peixes, principalmente após as chuvas em período de cheias. “Os alevinos caem ali, crescem e na próxima enchente, o peixe vai desovar e encontra esse bloqueio”, relata.
Sobre esse aspecto, a Cemig informou que com a intensificação do evento de arribação, verificado na Bacia do Rio São Francisco neste ano, com a migração dos juvenis, foi observada forte presença de cardumes a jusante da casa de força, “razão pela qual a empresa intensificou as atividades de monitoramento de peixes, acompanhando diariamente a evolução da qualidade da água, de forma a acompanhar os possíveis efeitos na ictiofauna”, explica.
Ainda, conforme esclarecimento da assessoria de imprensa da Cemig, após o desenvolvimento inicial nas várzeas e lagoas marginais, peixes jovens realizam migração de dispersão em busca de locais para terminar seu desenvolvimento e encontrar alimento e proteção contra predadores. “No rio São Francisco, essa migração é conhecida como “arribação”. No seu alto curso, ela tende a acontecer durante e depois das cheias, quando as várzeas e suas lagoas se conectam com o rio. Os peixes da arribação se aglomeram imediatamente a jusante da Usina Hidrelétrica de Três Marias (UHTM)”, completou.
2007 – Alguma semelhança?
No final de março de 2007, outro acidente envolvendo a empresa provocou a mortandade de sete toneladas de peixes da espécie Mandi. Os desdobramentos foram semelhantes ao ocorrido no último dia 03, quando pescadores identificaram milhares de peixes mortos perto do vertedouro da UHE Três Marias.
Os pescadores atribuíram a causa à falta de oxigenação para os peixes, devido a usina ter fechado as comportas dois dias antes. A represa estava com cerca de 93% de volume útil e, na madrugada do dia seguinte, a água da represa foi novamente liberada. Naquela época, a empresa foi multada em R$4,9 milhões pelo órgão ambiental do estado e mais R$ 6 milhões pelo Ministério Público.
“Em 2007 estava lá também, fecharam o vertedouro de uma forma que os peixes ficaram presos entre a caída do vertedouro e a calha do rio, chamamos de bacia, forma tipo um lago e os peixes ficaram presos ali”, lembra o pescador Leonardo.
Já, de acordo com Milton “Biguá”, em 2007 houve grande mortandade de peixes atingindo, segundo o pescador, cerca de 50 quilômetros de distância ao longo do Rio São Francisco. “Nada foi feito também. Volto a insistir na omissão dos órgãos responsáveis. Haver punição, a empresa deveria fechar as portas pela morte dos peixes. Hoje o que eu falo, estão tirando o sustento de milhares de ribeirinhos, de crianças, porque os pais trabalham, tiram o sustento daquela água. Não fazem nada para melhorar a situação, nada no social em benefício da população”, desabafa “Biguá”.
Do ponto de vista da Cemig, a única semelhança com o acidente ocorrido em 2007 está ligada à condição de arribação e a grande concentração de cardumes a jusante da usina. Na ocasião, segundo informou a empresa, uma máquina foi parada para manutenção com drenagem, causando aprisionamento de grande quantidade de peixes no tubo de sucção. Houve também a saída não programada de outra máquina, o que causou um rebaixamento repentino no canal de fuga, expondo a bacia de dissipação do vertedouro. “Como a abertura do vertedouro foi lenta, frente a presença de pescadores no local, houve também a morte de peixes nesta bacia. O somatório dos eventos na máquina e no vertedouro totalizou as sete toneladas”.
Pescadores lembraram de acidente ocorrido em 2007, que levou à mortandade de sete toneladas de peixes
Quinze anos após, a empresa ressalta mudanças nos procedimentos de operação da usina. Na época, foi criado o “Programa Peixe Vivo”, no qual, segundo a Cemig, foram implantadas ações preventivas para evitar situações semelhantes, entre elas a “adequação da bacia de dissipação do vertedouro, para diminuir a atratividade dos cardumes (furos para drenagem abaixo do nível de jusante); instalação das grades anticardumes, que diminui a entrada dos cardumes na unidade geradora e o monitoramento rotineiro à jusante da UHE, identificando a existência de cardumes a jusante da usina e determinando gatilhos para a restrição de operações de manutenção programada”.
Sobre o acidente da semana passada (03/04) a Polícia Militar do Meio Ambiente foi acionada, sendo a ocorrência notificada, no mesmo dia, à Diretoria de Inteligência e Ações Especiais (DIAE), ligada a Subsecretaria de Fiscalização Ambiental da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMAD), que irá avaliar o acidente e definir as medidas necessárias, inclusive a determinação da multa.
Em nota enviada à reportagem do CBHSF, a empresa afirma que continuará com todas as atividades de monitoramento ambiental e manutenções das restrições operativas para evitar qualquer novo acidente, tendo inclusive aberto o vertedouro no dia 06/04/2022, em decorrência da piora da qualidade de água verificada a jusante da usina.
Para os pescadores “Biguá” e Leonardo, a empresa precisa sofrer sanções mais rigorosas. “Cobramos o tempo todo lutando pela vida do ‘Velho Chico’, porém há um investimento para que ninguém entre na área da usina. Prejudicam o meio ambiente, ligam aparelhos sonoros que chegam a 8 km, espanta animais e afastam os pescadores daquela área, sendo que o pescador é o maior fiscalizador desse rio. Estamos lá, sempre de olho, fiscalizando, a denúncia sempre parte da gente”, afirma Biguá.
“Sou pescador profissional, pode-se dizer de berço, nascido e criado na beira do São Francisco, meu pai era pescador profissional e sustentou nossa família com a pesca e eu também. Esperamos que as autoridades façam valer o direito igual para todos e possam agir de forma ríspida com essa empresa, que muito prejudica os pescadores, principalmente quando tem um fluxo grande de águas, após as chuvas”, ressalta Leonardo.
Assessoria de Comunicação do CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Emílio Bellardini
Fotos: Cemig – Divulgação; Paulo Emílio Bellardini