Expedição Rio Paracatu percorre 370km do rio bom para fazer um diagnóstico de sua bacia.
No segundo dia de expedição, quando um de nossos barcos teve a hélice do motor quebrada por conta de pedras na calha do Rio Paracatu, Antônio Jackson, Borges Lima, membro do CBH São Francisco, relembrou o que é talvez o verso mais famoso de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso”. Lembrou também que, uma das interpretações, menos óbvia que a de que é necessário navegar, é a de que navegar é uma atividade de alta precisão.
Com o intuito de percorrer o Rio Paracatu para constatar, através de sua calha, a situação da Bacia como um todo, Antônio Eustáquio Vieira, Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paracatu, mais conhecido como Tonhão, organiza expedições desde 1993. Estima-se que o rio possui cerca de 300km navegáveis. No entanto, a expedição que aconteceu entre os dias 10 e 13 de maio, percorreu aproximadamente 370km dos 485km do Paracatu em 4 embarcações com 9 tripulantes e 4 barqueiros.
Houve, sim, alguns trechos em que navegar exigiu aquela precisão que Jackson lembrou. Em processo de assoreamento, o rio Paracatu, que em tupi-guarani significa “rio bom”, nem sempre é amigável com quem o navega – não por malícia, mas por estar já dando sinais de exaustão. Por debaixo da superfície turva do rio escondem-se bancos de areias e corredeiras com pedras que só os barqueiros mais experientes conseguem enxergar. Pelo fato de o rio baixar gradativamente em tempos de seca, encontrar as “estradas” onde, às vezes, apenas um barco pode passar, é tarefa para uma habilidade precisa.
Veja as fotos da expedição:
Porém, Jackson considera o rio 100% navegável. E é verdade: iniciamos a expedição a aproximadamente 100km da nascente do Paracatu e navegamos de barco até a sua foz, no rio São Francisco. Foram 4 dias em que percorremos o rio em busca de conhecer melhor suas glórias e dores. Para se conhecer alguém ou alguma coisa, é preciso tomar tempo e ter a consciência de que é também necessário mergulhar sem medo do que se vai encontrar. E o que vimos é que o rio ainda está vivo. Altino Rodrigues Neto, membro do CBH São Francisco e integrante da expedição, se sentiu surpreso positivamente com o estado do rio, embora esteja sofrendo com a captação de água em suas margens.
A captação de água expõe um problema importante: a mata ciliar, aparentemente conservada vista de dentro do rio, é estreita (em torno de 50m) e acabou sendo devastada para dar lugar à agricultura, principalmente de soja e milho. A mata ciliar não é apenas uma paisagem bonita. “A água da chuva na floresta infiltra cerca de 30%; sem a floresta, apenas 10% chega aos lençóis freáticos. Dessa forma, o rio Paracatu não pode ser mantido pelas nascentes, pois elas não estão sendo reabastecidas. Corremos um sério risco de que ele seja cortado em alguns trechos este ano novamente”, destaca Tonhão.
Para quem vive diretamente do que o rio fornece, constatar essa realidade é doloroso. “Por que o rio está acabando? Por que a chuva se afastou de nós? Os maiores fazendeiros, que têm dinheiro, drenaram as lagoas pra fazer pastagens. Nós precisamos da carne de boi, mas também precisamos do peixe e de água. Mas se o ser humano não tiver consciência pela preservação, vamos ficar sem água”, lamenta o pescador Quelé, morador de Ponto Chique, município próximo da foz do Paracatu no rio São Francisco, onde fomos recebidos com festa no fim da expedição. Pelo caminho, deparamos muitas vezes com o gado nas margens do rio, o que também é ilegal.
Além de tudo isso, são muitas as dragas no percurso, especialmente a jusante de João Pinheiro. O que deveria ser benéfico para o rio, acaba se tornando mais uma chaga: as dragas, na sua maioria muito próximas da margem, retiram a areia do leito do rio e devolvem a ele a água. Porém, se realizadas de maneira errada, acabam causando o deslizamento dos barrancos e consequente assoreamento do curso d’água. Pelo percurso, a poucos metros após as dragas, vemos árvores mortas caídas sobre o rio ou com suas raízes expostas, uma vez que as margens cederam por falta de sustentação.
É importante notar o seguinte: o rio Paracatu contribui com cerca de 26% da vazão do rio São Francisco na foz. Isso faz dele o mais caudaloso afluente do Velho Chico. A saúde deste rio depende grandemente do bem-estar do “rio bom”. Uma das coisas mais impressionantes de se conhecer um rio é ver como ele começa como um filete de água na sua nascente e termina na foz como um mundaréu de água. É belo encontrar pelo caminho os afluentes e constatar como cada um contribui, à sua maneira, para o curso d’água. Um rio é também o que seus afluentes são, e o Velho Chico é também Paracatu.
Quando chegamos à foz no quarto dia, não era mais possível saber qual rio era qual, qual era maior ou mais importante: os dois, àquela altura, se pareciam muito, como irmãos. Mas, antes de chegar ao rio da integração nacional, o Paracatu recebe as águas de Entre Ribeiros, e ali sim era possível diferenciar um e outro. No encontro dos rios, ao longe, era possível distinguir as águas turvas do primeiro da face mais límpida do segundo. Mas, à medida que nos aproximamos, mais e mais percebemos que um rio se mistura ao outro de forma gradual, se enlaçando aos poucos.
Tonhão sabe que navegar é preciso, por isso organiza essa expedição há tanto tempo. Ele sabe também que navegar é se enlaçar. É se enlaçar ao rio, que também nos navega e deixa em nós as memórias de suas belezas e dores. É se enlaçar à população ribeirinha, que conhece o rio como uma filha conhece a mãe. É se enlaçar aos membros da expedição, na troca de experiências, de vivências, de esperanças e receios. É contar com a mão de comitês irmãos, como o CBHSF, pois um rio depende do outro. Os rios são a metáfora da vida.
Ouça também o podcast com o presidente do CBH Rio Paracatu, Antônio Eustáquio:
Navegar é preciso, viver também é. E “viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida”, já dizia Riobaldo. E, se a gente não poetizar a luta, fica ainda mais perigoso. Nesses dias em que navegamos o Paracatu, não foi difícil poetizar a vida, nem se enlaçar. Vimos muitas realidades, vivemos a partilha comunitária, nos encontramos com muita gente. Na entrevista final, já de volta à sede do Movimento Verde de Paracatu, Tonhão fez o balanço geral da expedição, se dizendo pessimista com relação à situação do rio este ano. Quando eu encerrei a entrevista e desliguei o gravador, perguntei a ele o que o movia, apesar de tanta dificuldade e falta de recurso, a continuar lutando pelo rio. Ele me disse que não sabia, que sentia que era a própria força da natureza que o impulsionava. Eu digo a ele que o que o move é o rio, que navega por suas veias, assim como ele navega constantemente no veio do rio. Assim como, agora, o rio navegará a todos que participamos da expedição.
E escolhi poetizar este texto porque o rio e as pessoas com as quais convivi esses dias me poetizaram também. Navegar, poetizar e viver é preciso! Viva, rio Paracatu! Viva, rio São Francisco! Vivam, todos os que lutam pela vida!
Enlacemos as mãos.
“Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente, fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).”
Ricardo Reis
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Leonardo Ramos
*Fotos: Leonardo Ramos