De um lado, os moradores do sertão da Paraíba agradecendo de joelhos a chegada das águas do Velho Chico. Do outro, ambientalistas e pesquisadores que apontam na faraônica Transposição uma sucessão de erros que pode custar a vida do Rio São Francisco. Nossa reportagem visitou o açude do Boqueirão, em Campina Grande, abastecido pelo chamado Eixo Leste, que entrou em operação, ainda em fase teste, em abril de 2017.
“Transfusão” é a palavra que muitos moradores das comunidades ao redor do Açude Epitácio Pessoa, o Boqueirão, utilizam para se referir à Transposição do Rio São Francisco. Se considerarmos a definição da palavra no dicionário, “fazer passar um líquido de um recipiente para outro”, “espalhar, difundir, derramar, transformar-se, operar a transfusão do sangue”, a metáfora faz sentido. As águas do Velho Chico chegaram ao Boqueirão em abril de 2017, em meio às chuvas de março, que fecharam o verão do agreste após sete anos de uma das piores secas da história e quatro anos de severo racionamento.
O Boqueirão abastece Campina Grande e mais 18 cidades do entorno. Em 2017, o açude entrou em volume morto, com apenas 2,9% da capacidade total. Foi o pior volume registrado desde sua inauguração, em 1957, por Juscelino Kubitschek.
“Dava para andar nele, na terra rachada, a gente via cobra, casas da antiguidade”, rememora Dona Lourdes.
A solução imediata encontrada pelo Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs) foi escavar um canal através dos açudes Poções e Camalaú, em Monteiro (PB). O Eixo Leste da Transposição era, então, inaugurado, como medida emergencial, passando a funcionar em fase de pré-operação: “Foi feito uma espécie de rasgo nas represas destes açudes para a água passar mais rápido para Campina Grande”, explica João Fernandes, presidente da Agência Executiva de Gestão das Águas da Paraíba (AESA): “Se fosse esperar que as obras estivessem prontas, a água não chegava a Monteiro e estaríamos em colapso total”.
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Cristina Santos da Silva
“Não tem nada melhor que a transfusão. Isso é uma bênção para a gente”, diz Maria de Lourdes Santos da Silva, 62, pescadora – ou “pescadeira”, como ela diz. Na varanda de sua casa verde e azul, no Pasmado, comunidade da zona rural do Boqueirão, no Cariri paraibano, brota agora, entre as plantas originais, uma samambaia que diz ter vindo com a água da transposição do São Francisco. Assim como a semente da planta, peixes “estranhos” chegaram na corrente do Velho Chico: “Os primeiros peixes eram diferentes, peixe feio, mole, frio, todo mundo ficou com medo, com nojo, acostumado aos peixes duros do açude”, conta a filha de dona Lourdes, mãe de onze, Cristina Santos da Silva, 32 anos, também pescadora e agricultora.”
Josemar de Souza Santos
“Foram quatro anos de irrigação suspensa. Não tinha água para nada, não podia plantar, tudo secou, não tinha comida, não tinha peixe”, lembra Josemar de Souza Santos, agricultor e pescador, pai de uma família de 11 filhos em Mirador. Sua esposa, Josefa Maria Alves, 60, completa, diante do verde da plantação de feijão de corda, jerimum, acerola, laranja e macaxeira ao redor da casa: “Passamos muita dificuldade. A água estava gosmenta, com mau cheiro, a gente tomava banho e ficava fedido.”
Linduarte
“A água brotava do chão. Veio enchendo de baixo para cima, devagarzinho, sobre o chão seco…Foi uma bênção para nós”, diz Cristina Santos, ao redor de sua plantação de feijão, hoje verdinha. Seu marido, Linduarte, 43, o Lindo, agricultor e deficiente visual, mesmo com o glaucoma avançado, sentiu a chegada das águas caminhando sobre o açude. “Dava para sentir a diferença”. Para ele, a transposição parecia uma lenda. “A gente sempre ouvia falar, desde criança, mas eu já não acreditava que saía mais não. Por incrível que pareça, às vezes o mal traz o bem. Veio esta seca terrível, a gente etava sem água para plantação, para animal, até para a gente. E aí o São Francisco chegou”.
Vai-e-vem
Em março de 2018, praticamente um ano depois de inaugurada, a transposição das águas simplesmente paralisou. Foram detectados problemas e rachaduras nas estruturas de concreto nos açudes e o bombeamento acabou interrompido para reparos. O prazo inicial para a conclusão das obras era de 90 dias, mas foi constantemente adiado. Neste período, com a estiagem, o Boqueirão voltou a menos de 29% de sua capacidade, gerando insegurança nos moradores. “A gente fica preocupado, vê a água descendo, não avisam nada para a gente”, diz Garrincha, outro filho de Dona Lourdes, cuja renda depende do Boqueirão, o ponto turístico da cidade.
Seis meses depois, em 14 de setembro, a transposição voltou a funcionar. Mas a alegria durou pouco: na noite seguinte, o bombeamento era de novo interrompido. Novas avarias haviam sido detectadas em um dos trechos do canal, com suspeitas de vandalismo para beneficiar o agronegócio.
Segundo o Ministério da Integração, no mesmo dia em que os danos foram identificados, os engenheiros responsáveis fecharam a válvula que controla a saída de água e iniciaram as correções necessárias. “Os indícios apontam que o dano pode ter sido causado por terceiros e, por isso, foi registrado um Boletim de Ocorrência pela equipe técnica do Ministério da Integração”, informa a assessoria do MI. A captação irregular e desvios criminosos da água tem sido uma constante ameaça à segurança hídrica.
“Mal começou a transposição e os problemas já são muito evidentes”, comenta Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). “Aí entra uma discussão sobre se o conceito escolhido para esse empreendimento foi o melhor. O Comitê sempre advertiu que teríamos muito trabalho em administrar a transposição”.
Feijão de corda produzido por Dona Josefa Maria Alves com as águas da transposição.
A pesca é fonte de renda para muitas famílias da região do Boqueirão.
Elefante branco
Para José do Patrocínio Tomaz, hidrogeólogo e mestre em Engenharia Civil na Área de Recursos Hídricos, há um problema quanto ao dimensionamento dos canais. “Eles foram projetados para a vazão máxima de cada um, uma vez que previam que o reservatório de Sobradinho poderia atingir o volume de espera (superior ao volume útil) ou mesmo sangrar”, afirma.
Segundo Patrocínio, o projeto das obras da transposição é, no mínimo, inusitado: “Os canais são, geralmente, projetados para transpor uma vazão constante, mantendo o perímetro das calhas molhado. Se isso não acontece, os canais trabalham com perímetros secos, tornando-se vulneráveis às quebras, por ação da dilatação e contração térmicas que inevitavelmente enfrentam naquela região. Além de, em termos de obra civil, assentarem-se em rochas pouco consistentes, não suportando o peso e o atrito das águas sobre o fundo e as paredes do mesmo”. Para ele, o melhor teria sido investir em projetos de distribuição e abastecimento a partir da adução das águas do São Francisco, e não da transposição.
João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, também teme que a transposição seja um “elefante branco”. Ele afirma que o São Francisco não tem capacidade para atender a demanda de água. Seria mais econômico promover obras nas regiões afetadas, buscando fontes de água mais próximas. “Com muito menos recursos, poderiam ter sido mais consideradas alternativas como a construção de cisternas para abastecimento humano e a pequena irrigação. As águas do Velho Chico seriam de uso complementar e não a fonte principal”, diz.
Segundo o Ministério da Integração, foram feitos estudos e alternativas como esta foram analisadas, assim como o uso de águas subterrâneas, a dessalinização, o reaproveitamento de águas, a integração com outras bacias hidrográficas e a implantação de novos açudes. Mas nenhuma apresentou melhores resultados do que a integração das águas.
Também um antigo crítico à transposição, o pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) João Abner Guimarães Jr. alerta para outro problema: as perdas de água durante o trajeto das águas de um local a outro.
“Há mais de 60% de perdas por condução, e somam-se a isso outras relacionadas à evaporação, infiltração, além de outras questões que não se consegue no projeto. Na época da elaboração do projeto, estimava-se que as perdas seriam na ordem de 15%, mas elas já chegam a 60%”, diz.
Segundo Abner, “tem prevalecido uma preocupação política, até eleitoreira, acima das discussões técnicas necessárias sobre a operação. Parecem evitar o debate sobre os problemas do Eixo Leste, pois essa discussão certamente atingirá a situação do Eixo Norte, que é uma obra ainda maior e mais complicada”.
Incertezas e fragilidades
Em abril de 2018, o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou o resultado da avaliação do atual sistema de gestão do Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF), a cargo do Ministério da Integração Nacional.
Os exames evidenciaram que foi dado prioridade à execução das obras, mas postergado o planejamento para garantir a operação, manutenção e sustentabilidade da transposição a longo prazo. Há incerteza quanto ao impacto do custo de funcionamento e inadequação da estrutura necessária à gestão e operação do PISF.
Para reverter estas fragilidades, o MI tem adotado medidas de fortalecimento do sistema de gestão do PISF, a cargo da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF). Por e-mail, a assessoria da pasta informou que o Plano de Gestão de Riscos será colocado em prática quando do início da operação comercial do PISF e, atualmente, está incrementando sua equipe técnica para atender melhor a demanda.
Quem vai pagar a conta?
Há ainda pouca clareza sobre quem vai pagar a conta da operação, até então custeada pelo governo federal. Só os gastos com energia poderão atingir cerca de R$ 800 milhões por ano. O valor deverá ser pago pelos estados envolvidos (CE, PB, PE e RN). O PISF está hoje orçado em R$ 10,7 bilhões e o custo final estimado da obra é de R$ 20 bilhões. “A transposição pode ser um presente de grego”, diz o pesquisador João Abner. “Essa água pode sair muito cara para a população.
Durante esta fase de pré-operação, nenhum custo foi repassado pelos estados envolvidos. Ainda não existe mecanismo de cobrança. Minha hipótese é que estão esperando passar as eleições para que a fatura chegue”. Para ele , a gestão é complexa: “O maior desafio será separar as águas da transposição das águas naturais produzidas em cada região, que em condições normais serão dez vezes maiores do que a transposta. Nesse caso, como separar os diferentes usuários das águas misturadas?”.
Recentemente, em 19 de setembro, a Agência Nacional de Águas (ANA) publicou no diário Oficial da União a resolução 67/2018, que define as tarifas para a prestação do serviço de adução de água bruta para 2018. O valor definido para a cobrança da Operadora Federal, a CODEVASF, foi de R$ 0,801/m³ para a tarifa de consumo e R$ 0,244 para a tarifa de disponibilidade. As tarifas serão multiplicadas pelo volume entregue aos Estados beneficiados, para computar o valor a ser pago a partir do início da operação em cada Estado.
O custo total de operação para o transporte de água bruta em 2018 será de R$ 290,7 milhões, incluindo possíveis inadimplências, perdas de água e garantias para execução do serviço. Deste montante, serão pagos R$ 154 milhões pela Paraíba e R$ 24,7 milhões por Pernambuco. Os R$ 112 milhões restantes serão custeados pelo MI.
Segundo a CGU, o repasse desses valores para as contas de água dos consumidores poderão significar aumentos entre 5% e 21%. A Codevasf informou que está sendo realizado um estudo sobre o uso de energias renováveis para diminuir os custos da operação.
Comunidade Mirador, na Paraíba, é uma das beneficiadas com as águas da transposição.
Açude Boqueirão chegou a acumular um volume dez vezes maior após receber as águas do São Francisco.
Verde é a cor mais quente
Um ano após as águas do rio São Francisco chegarem à Paraíba, o tom pardo da vegetação do semiárido ganhou novas cores. Pequenas plantações se destacam entre os xique-xiques, facheiros e mandacarus predominantes na paisagem. Segundo as regras da regras da Agência Nacional de Águas (ANA), cada agricultor só pode plantar e irrigar meio hectare, uma vez que a prioridade da transposição é o abastecimento humano e animal.
“Cuidamos da agricultura de subsistência das pessoas, porque não tínhamos ainda água suficiente para atender todo mundo. É uma solução provisória, para proteger os menores e mais vulneráveis. Acho que atingimos este objetivo”, diz João Fernandes, presidente da Agência Executiva de Gestão das Águas do Estado da Paraíba (Aesa).
O modelo de irrigação liberado é limitado às técnicas de gotejamento e microaspersão, que os agricultores como José Alemar, 29 anos, hoje utilizam. “Agora a gente tem um pouco mais de esperança”, diz ele, que havia deixado a comunidade de Mirador para ser seminarista em São Paulo. As promessas de uma vida melhor com a transposição fizeram-no retornar. Assim como José outros fizeram o mesmo caminho de volta.
“A gente via pelo Facebook a alegria das pessoas, falando da transposição, da ‘chuvada’ e ficava doido para voltar”, conta o casal de agricultores Antônio Roberto de Araújo, o Tonhão, 37 anos, e Adinaílsa Araújo Vieira, a Naísa, 34 anos. Em 2015, sem ter como sobreviver em meio à seca total, migraram para o Rio de Janeiro com o filho de 16 anos, “fugindo do sofrimento”. Trabalharam como caseiros em um sítio na região de Teresópolis, mas, com as notícias de que a água ia chegar no sertão, decidiram regressar. A plantação de feijão ainda demora um tempo para a primeira colheita. Nem isso os faz titubear. “É uma vida sofrida, tem que ter coragem para trabalhar, nesse solzão de meu deus. Mas não tem nada como a casa da gente”, garante Naílsa.
Por Christiane Tassis
Fotos: Elisa Mendes