Mudança na Lei Nacional das Águas estimula valorização do papel central das mulheres na gestão dos recursos hídricos

29/11/2017 - 13:18


Seja na difundida imagem da mulher com a lata d’água na cabeça, no trabalho das lavadeiras do Jequitinhonha ou no cuidado para evitar o desperdício, atribui-se às mulheres papel central na proteção e gestão da água. Como uma espécie de matéria essencial para a vida doméstica, costuma-se dizer que essa é uma das tarefas do feminino: a atenção de um recurso tão necessário. No entanto, muitas vezes, as mulheres também tiveram suas contribuições historicamente “apagadas” no processo de oficialização do debate sobre o tema. Por isso, o Projeto Legado, uma iniciativa criada em dezembro do ano passado pela Agência Nacional de Água (ANA) com o objetivo de levantar propostas de melhorias na gestão de recursos hídricos, contempla esta necessidade, entre outras demandas. O documento, finalizado durante a programação do 22º Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos (ABRH), será apresentado no 8º Fórum Mundial da Água, em março de 2018 em Brasília, com a finalidade de sensibilizar políticas públicas específicas.
Entre as 19 propostas criadas, resultantes de discussões permanentes com a sociedade civil, uma delas foca exclusivamente no reconhecimento da participação e protagonismo feminino. Durante o 22º Simpósio da ABRH, em Florianópolis, de 26 de novembro a 1º de dezembro, as propostas foram debatidas profundamente, inclusive com a realização de uma oficina voltada para garantir a implementação delas. Uma das conclusões é que essa relação das mulheres com a água não deve ser entendida como “um fardo” a mais nas jornadas duplas e triplas dos trabalhos considerados femininos, mas sim, como uma das agentes-chave no processo de progressiva conscientização da água como um bem natural coletivo.
A proposta que prevê a valorização das mulheres tem como base os princípios da Declaração de Dublin sobre Água e o Desenvolvimento Sustentável de 1992. Este documento de mais de 25 anos é considerado um marco na gestão de recursos hídricos por reconhecer o direito universal de acesso à água, ao compreender como “as mulheres desempenham um papel central no fornecimento, gestão e proteção da água”. Mas o princípio não foi incluído nas diretrizes da lei nacional 9.433/1997, a chamada “Lei das Águas”. Por isso, a proposta é articular nos fundamentos da lei o princípio 3 da Declaração de Dublin, e fazer esta reparação histórica.
A própria repartição dos poderes pode ser questionada, a começar com a Agência Nacional de Água (ANA). Embora faça menção ao nome feminino, dos cinco diretores, apenas uma é mulher e foi ela, justamente, a primeira mulher indicada para o cargo. Acompanhando a necessidade das questões de equidade de gênero, a ANA criou final de 2016 um Comitê de Gênero, instalado este ano. A assessora de Planejamento e integrante do Comitê de Gênero da ANA, a alagoana Maria do Socorro Lima Castello Branco, defende que há muitas mulheres qualificadas para assumir posições, mas a ocupação dos espaços por elas ocorre ainda de forma tímida. Na avaliação dela, a mulher nunca tem uma única tarefa, ela enfrenta a tripla jornada, com o acúmulo de responsabilidades. Por outro lado, acredita que as mulheres também não perceberam sua força e capacidade para ocupar os espaços de decisão. “Estamos assumindo outros espaços, ocupando esses postos. Mas ainda precisamos ser mais audaciosas. Nós não percebemos o nosso poder gerencial. É a mulher que gerencia a água, que provê a água para a sua casa”, defende. E arremata: “A mulher é a gestora da água. Os homens podem até fazer a gestão das barragens, mas quem a gerencia em nível local são as mulheres”.

Mulheres assumem protagonismo na gestão da água

No Brasil, o abastecimento de água ainda é um problema enfrentado por algumas regiões. Apesar de se falar em índices de abastecimento em torno de 90% do país, em regiões mais remotas, isto não é a realidade, denuncia a assessora da ANA, Maria do Socorro. “Na seca, especialmente, são as mulheres que vão buscar a água, com o prejuízo de sua atividade educacional, de seu lazer e de sua infância, porque as meninas é que ajudam as mães no dia-a-dia da casa”, aponta.
O melhor caminho para mudar esta realidade, na sua avaliação, é a promoção de ações de capacitação e a qualificação. Por isso, Maria do Socorro espera contar com os comitês das bacias hidrográficas para chegar até elas, mesmo reconhecendo o fato de as equipes serem reduzidas e não multidisciplinares. “O Brasil é muito grande, e as distâncias econômicas e sociais são imensas. Muitas vezes, quem está em Brasília não percebe o que a mulher do semiárido está passando. E é essa mulher que queremos alcançar”, resume.
Diretora da Agência Nacional de Água (ANA), Gisela Forattini está acostumada a ser a única mulher presente nas mesas e discussões acerca da temática dos recursos hídricos. “Já participei de mesas com dez participantes em que era a única mulher”, relembra. Ela defende a necessidade de políticas públicas afirmativas para promover a equidade e colocar a questão na pauta da ordem do dia. Engenheira civil e mestre em Ciências, na área de recursos hídricos e saneamento, observa que “a valorização da mulher na gestão dos recursos hídricos é uma preocupação mundial, mas não se vê ainda muito no Brasil.”

Gisela Forattini, Diretora da Agência Nacional de Água

O atraso da lei 9.433 neste aspecto é facilmente detectável, principalmente no nordeste, na região do semiárido brasileiro, justifica a diretora da ANA. Com a experiência de quem está na agência desde 2001 e na área há 40 anos, quando se formou em engenharia civil, um campo até pouco tempo predominantemente masculino, ela viu a necessidade de investir em políticas públicas afirmativas para mudar esta realidade. “Nós temos, felizmente, nos próprios comitês muitas representações femininas. Eu tenho uma experiência grande no nordeste. Trabalhei no Proágua semiárido (Programa Nacional de Desenvolvimento de Recursos Hídricos). Eu ainda me emociono ao lembrar de quando nós levávamos uma adutora para ‘fazer a água andar’, como diziam à época, e quando a adutora começou a funcionar, as crianças todas diziam: ‘mãinha, mãinha, a água é docinha’. Não era água doce, era uma água que não era salobra. Uma água de melhor qualidade que estava sendo levada para aquelas crianças. Isso, para mim, ficou marcado até hoje. A primeira palavra que saiu da boca daquelas crianças era mãinha, não por acaso”, relembra, emocionada. E completa: “As mulheres têm de ser valorizadas em todos os níveis, sejam nos comitês, órgãos gestores, ONG’s, em todas as instituições que integram o nosso sistema nacional de recursos hídricos”.

CBHSF reconhece importância da valorização das mulheres

No Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), a presença de mulheres é destacada pela força do diálogo no exercício de trazer o contraditório. Para a coordenadora da Câmara Técnica de Planos, Programas e Projetos do CBHSF, Ana Catarina Pires de Azevedo Lopes, a contribuição da mulher na gestão da água é institucionalizada. Como se trata de algo naturalizado, não se costuma destacar esta característica, acredita. “A mulher assume a responsabilidade pela água, cuida dos mananciais porque sabe que é uma questão de sobrevivência. No semiárido, é assim. Mas no mundo todo é visto desta maneira”, indicou. “A água é uma palavra feminina. Se a gente quer discutir a água, tem de discutir o feminino: aquela que cuida, que preserva, que tem condições de observar coisas além, que garante a água para o filho beber, para a família se banhar, aquela que cuida para não haver o gasto desnecessário”, ponderou, ao lembrar que durante a gestação, o feto mora numa bolsa d’água.

Ana Catarina Pires de Azevedo Lopes, coordenadora da Câmara Técnica de Planos, Programas e Projetos do CBHSF

A inclusão da proposta no Legado valoriza as mulheres anônimas que têm processo central nesse processo. “Só não quero que as pessoas vejam o semiárido com aquela visão do pobre. O semiárido é muito rico. Seus ativos são muito grandes. Mas as pessoas costumam reconhecer seus ativos como os da fragilidade do sistema. Tenho certeza de que o semiárido daqui uns anos estará dando lições para a população. Porque a escassez de água é mundial. O problema da falta d’água está em todos os lugares. O semiárido convive com a falta d’água então não é algo anormal, é algo inerente cuidar dessa água para que os biomas permaneçam. A mulher faz isso, garante às futuras gerações essa discussão de forma muito mais apropriada porque faz parte de sua vida”, opinou.

Na cerimônia de abertura do 22º Simpósio da ABRH, apenas uma mulher entre as oito autoridades

Na abertura do 22º Simpósio Brasileiro da ABRH, em 26 de novembro, a professora Nadia Bernardi Bonumá, do departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e presidente da comissão organizadora local, foi a única mulher na mesa oficial formada por oito autoridades. “Esses espaços surgiram dentro do setor de engenharia, tradicionalmente mais masculino. Esse cenário está mudando. Mas, em termos de participação política, nos cargos, ainda temos mais homens. Sinto que há um espaço a ser aberto, por nós, mulheres, na questão da água”, considerou. Para ela, as mulheres têm muito a contribuir com a visão técnica e olhar diferenciado.

Nadia Bernardi Bonumá, do departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

A pesquisadora é entusiasta da inclusão da proposta de valorização das mulheres no Projeto Legado porque entende ser uma das formas de promover esta mudança. Nadia destacou que 50% da produção científica no Brasil hoje é feita por mulheres, ponto destacado por ela na abertura do encontro. “Nós tivemos um prêmio de jovens pesquisadoras e foram selecionadas quatro pesquisadoras. Temos grandes nomes trabalhando na pesquisa, na ciência. O que falta é que essas mulheres acessem as decisões políticas. As mulheres não são tão competitivas quanto os homens. Talvez essa seja uma questão. Não é uma questão técnica, ou de competência, mas nós precisamos ainda de mais lideranças femininas”, defendeu.
Lideranças femininas à frente da discussão sobre água também não desconsideram o fato de parte dos homens no País ainda terem dificuldade de convivência diária das mulheres nos postos chaves de decisões e poder. Por tudo isso, há um consenso de que a mudança na lei nacional é pertinente e legítima.

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Por Magali Moser
Fotos: Rodrigo Sambaqui