“Hoje sofre o ribeirinho e o meio ambiente local, mas, se nada for feito, sofreremos todos, como uma reação em cadeia”
A frase é de Roberta Casali, coordenadora e vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia (OAB/BA). Com um currículo extenso na área de direito ambiental, a advogada fala na entrevista a seguir sobre a escassez hídrica do São Francisco e seus impactos, com destaque para a Bahia. Além disso, mostra como a OAB/BA vem atuando de forma a promover a recuperação do Velho Chico, revelando próximos passos da instituição e ressaltando a articulação com o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF).
“A recuperação do Velho Chico não pode ser vista como um projeto pontual ou dessa década; ao contrário, deve ser encarada como meta de longo prazo e pautar discussões permanentes na nossa entidade”, defende.
Roberta aborda também pontos relacionados à gestão das águas e caminhos para superar a crise hídrica que se instalou na Bacia. Ela destaca, ainda, a importância da soma de esforços entre diferentes atores da sociedade para o rio não morrer: “não podemos assistir impassíveis ao sofrimento da região, mesmo porque o problema é sistêmico e seu agravamento certamente ultrapassará as fronteiras da Bacia do Velho Chico.”
Dentre todos os estados por onde passa, é na Bahia, mais precisamente no Semiárido, que o Rio São Francisco percorre o maior trecho. Quais as especificidades da região e os principais problemas enfrentados em virtude da escassez hídrica?
O Rio São Francisco é um dos mais importantes cursos d’água do Brasil e da América do Sul, se constituindo na principal fonte de água doce da região Nordeste. Na Bahia, ele percorre aproximadamente 1300 km, estando inserido em dois biomas muito sensíveis: a Caatinga e o Cerrado. A Caatinga é considerada o bioma mais sensível do país e um dos mais susceptíveis à interferência humana e às mudanças climáticas globais em todo planeta. Apesar de ilustrada como a região de solo rachado, pessoas famintas e gado esquálido, ela é uma das regiões semiáridas com maior biodiversidade do mundo. Infelizmente, o bioma já apresenta processo de desertificação em alguns pontos. Tanto o Cerrado como a Caatinga baiana sofrem com a maior seca dos últimos cem anos e essa escassez hídrica guarda relação direta com o desmatamento praticado pelo uso intensivo do solo para a agricultura, pecuária e mineração. Entendo que os principais problemas decorrentes desse estresse hídrico são a iminente crise generalizada no abastecimento de água, o agravamento da pobreza, o êxodo rural, a perda na oferta de alimentos, dos meios de produção e da biodiversidade.
A cobrança pelo uso da água é uma das estratégias para a gestão sustentável do Rio. O que você pensa sobre ela e quais outros caminhos defende para o enfretamento das dificuldades vividas pelo Velho Chico e suas populações?
A cobrança pelo uso da água é um instrumento econômico de gestão das águas previsto na Política Nacional de Recursos Hídricos e na Política Estadual de Recursos Hídricos da Bahia. Ela é uma medida almejada pelos Comitês de afluentes baianos pois tem se revelado importante incentivo à utilização racional do recurso hídrico. Os valores obtidos com a cobrança devem ser utilizados para viabilizar a implementação de programas voltados para a melhoria da quantidade e qualidade da água do rio, a exemplo da recuperação da calha nos trechos assoreados e do reflorestamento das áreas de preservação permanente localizadas às margens do corpo hídrico.
Além da cobrança pelo uso da água, é imprescindível a implantação de projetos de educação ambiental na Bacia do São Francisco para sensibilizar comunidades ribeirinhas, empreendedores e gestores públicos sobre a necessidade da adoção de boas práticas de uso do solo e de recuperação de áreas degradadas, além da preservação do patrimônio histórico e cultural que está se perdendo.
Esclarecimentos sobre a legislação aplicável e conscientização sobre a adequação das condutas também são valiosos para a proteção do Velho Chico. Por fim, como forma de otimizar o recurso hídrico remanescente, são imprescindíveis projetos de saneamento básico nos municípios ribeirinhos de modo a resguardar a água livre de poluição por esgoto doméstico e por aporte de resíduos oriundos de atividades econômicas.
De que forma a Comissão do meio Ambiente da OAB/Bahia atua para contribuir com a preservação e revitalização do Velho Chico?
Para a OAB/BA, como já manifestou seu presidente, todo brasileiro tem um sertão dentro de si e a temida morte do rio da integração nacional ameaça a própria integração. A OAB pode colaborar com a preservação e a revitalização promovendo fóruns de discussões sobre a crise hídrica do Rio São Francisco, com foco no papel da Administração Pública submetido à sociedade e ao modelo de desenvolvimento do Brasil.
A Comissão Nacional de Defesa do Rio São Francisco foi criada de modo a firmar uma parceria do Conselho Federal da Ordem (CFOAB) com as seccionais dos estados banhados pelo Rio. Estamos, por exemplo, avaliando o ajuizamento de ação civil pública para obrigar autoridades ao adequado enfrentamento da questão.
E quais as principais demandas e desafios enfrentados pela Comissão no trabalho com pautas relacionadas ao Rio São Francisco?
A Ordem busca estar presente nos Comitês de Bacia afluentes do São Francisco e participar também do próprio CBHSF, em consonância com as demandas advindas das subseções banhadas pelos seus afluentes.A preservação, a conservação e o desenvolvimento sustentável devem ser a baliza da Comissão de Meio Ambiente da OAB.
A recuperação do Velho Chico não pode ser vista como um projeto pontual ou dessa década, ao contrário, deve ser encarada como meta de longo prazo e pautar discussões permanentes na nossa entidade, de modo que sempre possamos buscar sua recuperação e conservação ainda que conscientes de que o rio não mais voltará a apresentar as características que possuía antes das intervenções incrementadas a partir de 1970.
Um rio tem vida e seu processo natural deve ser respeitado, sendo tentativa inútil e puramente demagógica buscar o status quo original do Velho Chico. Deve-se buscar um projeto que vise estabilizar os processo ecológicos do rio, de suas margens e da sua bacia, utilizando o conhecimento científico hoje à disposição.
De que forma a OAB se articula com comitês de bacias do estado e outros atores? Como a articulação com o CBHSF contribui para o avanço dessas pautas?
Vejo a OAB como um potencial e importante parceiro dos Comitês, pois nossa instituição foi criada em 1930 e tem demonstrado, ao longo de décadas, seriedade e eficiência na defesa dos interesses coletivos. Buscaremos ocupar assentos nos Comitês afluentes do São Francisco e do CBHSF para que, desse modo, possamos acompanhar de perto os trabalhos realizados, subsidiar com informações oriundas das suas seccionais, colaborar nas tarefas em curso e até mesmo mediar conflitos. Enfim, não podemos assistir impassível o sofrimento da região, mesmo porque o problema é sistêmico e seu agravamento certamente ultrapassará as fronteiras da Bacia do Velho Chico.
Hoje sofre o ribeirinho e o meio ambiente local, mas, se nada for feito, sofreremos todos, como uma reação em cadeia. Que acolhamos o clamor da belíssima canção intitulada “Boato Ribeirinho”: “Não deixe morrer, não deixe o rio morrer/Senão morre o ribeirinho de fome, de sede, de sei lá o quê.”
A OAB-Bahia participa de ações no âmbito do Viva Chico – da nascente à foz do São Francisco, projeto nacional que envolve diversos estados do Brasil. Como é feita essa articulação e de que forma a iniciativa tem contribuído para o futuro do Rio?
A OAB-Bahia participa do programa “Viva Chico, da Nascente à Foz” que visa congregar esforços das subseções existentes ao logo da Bacia, em nível nacional. No próximo ano, pretendemos realizar a caravana de advogados da nascente à foz, promovendo debates e discussões no intuito de deixar o tema em evidência e colaborar com discussões sobre a revitalização do Velho Chico.
O São Francisco não pode ser visto apenas como um canal de água em sua calha principal, ao revés, deve ser contemplado em suas múltiplas dimensões. Daí a necessidade de nos debruçarmos sobre problemas relacionados a questões como: desaparelhamento dos órgãos municipais de fiscalização e licenciamento ambiental, ocupação predatória e degradação do solo na região da bacia, supressão irregular de vegetação em suas margens, especificidades e carência dos povos ribeirinhos, uso abusivo de agrotóxicos, assoreamento, baixa reprodução de peixes, lançamento de contaminantes nas águas, antiquadas práticas de queimadas, de carvão vegetal como fonte de energia e de irrigação por inundação, além do cruel aniquilamento de espécies vegetais e animais, algumas delas já ameaçadas de extinção.
Muito há o que se fazer, não podemos prescindir e demonizar o desenvolvimento das atividades econômicas na região pois elas são asseguradas por lei e, além disso, proporcionam renda e recurso financeiro para a tão desejada recuperação do passivo socioambiental.
Vocês participaram recentemente de uma Fiscalização Preventiva Integrada na Bahia. O que foi identificado com a ação e quais os encaminhamentos surgidos a partir dela?
A Ordem dos Advogados participou, pela primeira vez, da Fiscalização Preventiva Integrada-FPI, a partir da necessidade do Ministério Público da Bahia , por meio do NUSF – Núcleo de Defesa do São Francisco – , em levantar problemas da região para melhor identificar as medidas de reparação cabíveis.
A FPI tem ocorrido desde 2002 e congrega esforços de aproximadamente 30 instituições (dentre elas Ibama, INEMA, Ministério Público, IPHAN, Polícia Militar e Rodoviária, CREA, INCRA e FUNASA) que atuam de modo articulado e multidisciplinar. A atuação da OAB se deu entre os dias 21 a 27 de outubro, com foco na proteção do meio ambiente natural, cultural e do trabalho na Bacia do Rio São Francisco, buscando a melhoria da qualidade de vida na região. Houve também providências de cunho fiscalizatório, por parte dos entes com poder de polícia, visando coibir o lançamentos de contaminantes no rio, a captação de água sem outorga, o uso indevido de agrotóxico, a supressão vegetal desautorizada, o comércio de animais silvestres, o prejuízo ao patrimônio histórico e cultural, além de outras afrontas à legislação.
Como próximos passos, trabalharemos para que seja promovido um fórum de debates e definidas medidas institucionais a serem implementadas pela Ordem dos Advogados, que deverá, inclusive, articular a interface e as ações coordenadas envolvendo representações da nossa instituição em outros estados.
O quadro da questão hídrica tem se agravado na Bahia e em várias partes do país, em virtude de mudanças climáticas e outras ações do homem. Quais instrumentos e condutas a sociedade deve adotar para reverter esse cenário, desde já?
As mudanças climáticas têm raizes em fenômenos naturais, mas é forçoso reconhecer que esse fenômeno tem sido agravado pela má conduta humana. Um dos caminhos para minimizar o problema é a recuperação do passivo, a mitigação dos impactos inevitáveis por meio da disseminação de tecnologias de convivência com o Semiárido e a criação de incentivos ao uso racional e à proteção de recursos naturais como, por exemplo, o pagamento por serviços ambientais.
O homem tem buscado retirar da natureza o que necessita sem se preocupar com o tempo necessário à recarga e recuperação natural e, por mais incrível que pareça, sem se dar conta de que seu comportamento predatório afetará justamente quem ele busca amparar: seus descendentes. O desenvolvimento sustentável deve ser o pano de fundo de todas as atividades econômicas, a fim de ser retirado do meio ambiente natural somente aquilo que ele possa oferecer no momento ou aquilo que o homem possa lhe devolver, compensar.
Por Andréia Vitório