Prestes a completar 84 anos de idade – “e 61 de casado”, faz questão de ressaltar –, Antônio Gomes dos Santos, o Toinho Pescador, relata com o olhar e por meio das poesias que registra no papel a tristeza pela realidade atual do rio São Francisco. A comparação com o tempo de sua juventude, quando o rio era bom para pesca e para tudo, é automática. Nascido em Penedo (AL), em 1931, ele nunca deixou a cidade e sempre procurou se envolver nas causas em defesa do Velho Chico.
Órfão de pai aos 12 anos, Seu Toinho precisou assumir o comando da família e isso fez com que só estudasse até o 4º ano primário. Ele relata que num dos momentos de apreensão da mãe, que antevia dificuldades de não ter o que comer, foi taxativo e garantiu que com o São Francisco na porta, ninguém morreria por falta de alimento. “Hoje, não seria mais assim”, lamenta, ao lado da eterna companheira, Luzinete Santos, com quem teve sete filhos e adotou outros dois.
Seu Toinho foi o primeiro pescador do Nordeste a compor o Conselho de Representantes da Confederação Nacional da categoria. É um líder nato, reconhecido nacionalmente pelo seu trabalho em defesa do São Francisco. Por duas oportunidades, foi presidente da Colônia de Pescadores de Penedo. Nesse período, concorreu e venceu um concurso nacional de poesia. Usou todo o dinheiro da premiação para adquirir uma linha telefônica para a Instituição.
À frente da representação dos pescadores penedenses, Toinho Pescador aproveitava cada reunião com autoridades e viagens diversas para fazer contatos e conseguir seu grande sonho na oportunidade: dotar a Colônia de um barco de alumínio. Conseguiu dois. Percorreu toda a extensão do rio, desde sua nascente, em Minas Gerais, até a foz, em Piaçabuçu. Mais tarde, usou o cargo de presidente da Federação dos Pescadores de Alagoas para defender o rio, inclusive em eventos internacionais.
Depois de ter vivido tanto tempo junto ao São Francisco, qual o seu sentimento quando olha para o rio nos dias de hoje?
É doloroso. Estou fazendo um tratamento de saúde em Maceió e quando chego em Penedo e vejo a situação do rio, eu sempre me revolto. Não com Deus, pois ele nos deu e continua nos ofertando a sabedoria. Minha revolta é com os homens, com a natureza humana, especialmente a dos poderosos. Esses, que deveriam oferecer melhores condições, apenas exercem a dominação sobre os pequenos, os fracos.
Quando começou sua atuação em defesa do São Francisco, qual era seu pensamento? O que esperava que pudesse acontecer?
Quando eu comecei a luta, representando a minha categoria, os pescadores, eu esperava que, unidos, a gente pudesse mudar a história, garantindo a preservação do rio. Não é o que nós vemos nos dias de hoje. Mas, apesar de tudo, ainda tenho essa esperança. Enquanto eu não morrer, não perderei a fé de mostrar todos os prejuízos e tentar mudar essa realidade. Eu me lembro de um padre de Penedo, há muitos anos, que já profetizava que o rio iria virar mar. E o que é que vemos hoje?
Como o senhor vê os projetos elaborados para o rio?
Os projetos que vemos, muitas vezes têm boas intenções, não vamos negar, mas a realidade é que são feitos em cima do lucro. Não pensam nos prejuízos que podem causar e que, na verdade, provocam. É o que a gente vê com a própria Transposição e o projeto das hidrelétricas. Os projetos poderiam ser feitos, mas sem interromper o descimento das águas barrentas do rio. Aquelas águas barrentas não são poluição. São águas ricas, apropriadas para a reprodução das espécies nativas. Antigamente, essa era a condição para que os peixes lançassem seus ovos e não fossem comidos pelos predadores. É preciso respeitar a natureza.
Inclusive, o senhor escreveu uma poesia sobre isso…
Está no livro, com o título Velho Chico. Diz assim: Nosso velho São Francisco é um rio varonil/ Quando tinha a água barrenta era o rio do surubim/ Hoje está ficando sem nada, ai que saudade sem fim/ Até mesmo os canoeiros estão achando ruim/ Porque acabou a safra do arroz que tinha aqui/ É preciso viver unidos, para desse abismo sair/ Na cidade de Igreja Nova é a maior reclamação/ De 75% da sua população que vivia da água e da terra/ E não tem mais terra, não/ Porque a Dona Codevasf /que chegou como um leão quando esturrou na serra/ Correm todos para o sertão/ É preciso viver unidos, senão entram na escravidão.Confiamos em Jesus Cristo porque é nosso irmão/ Desceu do céu à terra para nos dar esta lição/ Onde o povo está unido/ Não existe escravidão.
Fazer poesia é uma forma de protesto, de luta por dias melhores para o rio?
É verdade. Eu fui convidado pelo bispo dom Luiz Cappio pra passar um ano, saindo da Serra da Canastra à foz. Aí eu fui pra Montes Claros, de onde partiu a expedição e fiquei com muita vontade de participar, mas não tinha como, porque eu tinha nove filhos e não podia passar um ano fora de casa. Falei com ele pra colocar outra pessoa na minha vaga… Mas fiquei trabalhando. Eles foram pra fazer um diagnóstico e passaram um ano todinho. Quando chegaram a Penedo, eu já tinha me preparado pra uma caminhada, que teve a participação de umas três mil pessoas. Fomos até a beira do rio, perto da Igreja de Nossa Senhora das Correntes, onde aconteceu uma missa. Então, quando acabou, eu pedi a palavra e disse que queria recitar uma poesia, que foi essa, a segunda poesia de minha autoria a ser premiada. O prêmio foi um rádio. Naquela época, o rádio era um bem muito importante, de grande valor… toda casa tinha um.
Tem o caso também de um prêmio que chegou da Alemanha…
Foi com a poesia São Francisco, Nosso Pai, que eu também recitei naquela praça de Penedo. Aí, poucos dias depois, quando eu cheguei da pescaria, minha esposa me chamou e disse que tinha chegado um convite. A gente não tinha telefone ainda. O rapaz que trouxe foi um sociólogo de Minas Gerais, o Adriano. Ele disse: “Seu Toinho, nós ganhamos o prêmio, mas a gente tem que ir buscar esse prêmio. Eu perguntei, onde? Ele disse que era na Alemanha. Eu aí me espantei, né? Eu perguntei: E como é que eu vou? Ele disse pra eu não me incomodar, porque ia dar um jeito, porque eu só precisava ficar fora um mês. Eu disse a ele que precisava conversar com dona Luzinete. Ela disse: Vá. Aí eu fiquei animado. Disse pra mim assim: Eu vou. Quero conhecer a Alemanha. Aí eu fui. Conheci a Alemanha e a Áustria. Vi o rio Danúbio, na Alemanha e o rio Mur, na Áustria.
Como foi a experiência na Europa?
Quando eu cheguei no rio Danúbio, tomei um susto. Um rio maior que o São Francisco mais de 100 quilômetros, totalmente podre, a ponto de ninguém poder colocar o pé na água. Não encontrei um só pescador. Tinha criador, mas pescador, nenhum. Conversei com várias pessoas e todos diziam que queriam conhecer o trabalho da gente aqui. Uma das pessoas de lá disse que eles queriam se espelhar na luta da gente aqui pra recuperar o rio Danúbio. E depois disso tudo, o nosso rio foi caindo, caindo, caindo até chegar ao ponto que vemos hoje.
Qual o futuro do Velho Chico?
Um futuro difícil, por causa do desrespeito à natureza. O povo precisa compreender que é possível viver, desde que se respeite a natureza. Aqui, nós temos um problema em nossas vistas e ninguém se preocupa. A natureza muda. O homem quer ser mais que Deus. Certa vez, em uma viagem, eu conversava com uma japonesa. Ela me dizia que jamais iria voltar ao Japão. Eu perguntei por que e ela me disse que era por causa da usina nuclear. Veja. Lá, ela já conhece e sabe que não presta, o perigo que é a energia nuclear. E o que o governo quer implantar aqui? Mesmo com todos os riscos, a gente sabe que é exatamente essa forma de fornecer energia que o governo brasileiro quer implantar aqui, e quer usar as águas do São Francisco para isso. Isso é uma agressão sem tamanho.
O senhor acredita que a revitalização seja possível?
Se a gente tiver a oportunidade de conversar com a presidente Dilma, eu tenho certeza que ela vai se sensibilizar com a situação do rio. Tem esses problemas todos de hoje, mas a gente tem que reconhecer quantas casas foram feitas para os pobres, pelo presidente Lula e pela presidente Dilma. Por isso, eu acredito na sensibilidade da Dilma pra revitalizar o nosso São Francisco. A gente deve se lembrar dos projetos de antigamente, que tiraram as pessoas das casas em benefício do agronegócio. O povo precisa acordar e ver que nem tudo é como pintam. Tem projetos que acabam os mangues com a promessa de emprego, mas não enxergam que o nosso povo precisa, antes, ser preparado pra enfrentar isso tudo.
Diante do sofrimento intenso do São Francisco, o que é necessário fazer para mantê-lo vivo?
As lagoas marginais. Elas são o berçário natural dos peixes, que estão sendo extintos no rio. Tenho uma tristeza muito grande porque a gente tem voz, a gente lança as propostas, mas os burocratas só colocam o que interessa. O Ibama destrói os covos (artifício para capturar peixes e camarões) dos pescadores, mas não interferiu para preservar as matas, que acabaram totalmente, e o resultado é a fabricação de covos com plástico, que polui. Antes, isso não acontecia.
Como essas lagoas marginais desapareceram?
No momento em que tiraram as matas, a chuva, quando bate, vem com toda força, e quando bate no solo carrega areia para o rio e aí vem a assoreamento. Quando tinha mata, a chuva batia na árvore, em outra árvore e só carregava folha, grilo e minhoca para o rio, e servia de alimento. E aí parou. Acabou a pesca, acabaram as embarcações.
O senhor é muito crítico do agronegócio. Qual sua maior queixa?
Estive em Irecê, na Bahia, e lá cortaram a caatinga, devastaram tudo, para favorecer o agronegócio, plantando feijão. Isso não podia acontecer. A caatinga, do jeito como existia, favorecia a sobrevivência do rio. A caatinga é um bioma riquíssimo e hoje está totalmente devastada.
Como o senhor compara o São Francisco de hoje com o de ontem?
É como eu digo na poesia: Há 25 anos, os pássaros passavam na vista da gente… era bonito a gente ver, logo no começo do dia, aquela revoada, cantando, alegrando o dia… Não tem nem como descrever. É como eu tô dizendo: bonito de se ver. E hoje, não existem mais. Isso é de cortar o coração. E digo, de novo, o que está na poesia: Quem zela pelo Velho Chico, tem Jesus no coração. O amor pelo rio não é da boca pra fora. Não é apenas uma palavra que sai pela boca. É mais do que isso. Tem que sair com sentimento, do coração. É preciso lutar com bravura para garantir a existência do rio. Onde o povo está unido, não existe escravidão.
*Esta matéria foi veiculada na Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 07 | DEZ 2015. Para ler a revista completa, acesse.
ASCOM – Assessoria de Comunicação do CBHSF