Dois carros cheios de gente, cada um com pelo menos cinco pessoas, estacionam naquele lugar inóspito onde eu me encontrava sozinha, aguardando os companheiros que haviam se embrenhado no mato para registrar em frames o horror. Dali, do topo do morro, podia-se ver o vale, por onde a lama descera matando gente, matando bicho, matando o rio Paraopeba. O motorista do primeiro carro, Mário Antônio Xavier, um senhor de pouco mais de 60 anos, aposentado, tinha os olhos vermelhos, o ar fatigado, as botas sujas de lama. Quando lhe pergunto o que o grupo fazia ali, numa estradinha vicinal de Serradão, área rural de Brumadinho, ele responde: “Meu filho, estou procurando o meu filho”.
Passavam das dez da manhã de sábado, 26, o day-after, cerca de 20 horas depois do rompimento da barragem 1 do complexo Mina do Feijão, no município de Brumadinho, a 60 quilômetros de Belo Horizonte. Seu Mário, assim como todos do seu grupo, havia gastado a noite margeando o mar de lama, chamando pelo nome de Gustavo Andrier Xavier, de 29 anos, que trabalhava como mecânico preventivo da Vale. O último contato fora às 7 e meia de sexta, quando o rapaz saíra para trabalhar. Até ali, o único vestígio era o carro, que o pai encontrou intacto no estacionamento da empresa.
“Tentamos pelas matas, gritando, gritando, gritando. A noite toda”, contou ele, acrescentando nomes à lista de procurados: “Além do meu filho, estão sumidos mais quatro da família, quatro sobrinhos: André Santos, Luciano Rocha, Letícia Mara e Lenilda Cardoso. Todo mundo trabalhador, minha Nossa Senhora”.
Acompanhando o pai, estava a filha, Aline Aparecida Xavier: “A gente começou a procurar às seis da tarde de ontem. A quantidade de profissionais trabalhando nas buscas era mínima. Ficamos a noite toda. Não tinha ninguém, só uns policiais fazendo self”.
Ao longo do sombrio sábado, eu cruzaria com muitas famílias como a de seu Mário, na desesperada busca pelos parentes. Elas estavam em todos os lugares. No local escolhido pela Vale para concentrar as informações, centenas se aglomeravam, entre a esperança e o desespero. Até o final dia, os bombeiros confirmaram 60 mortos e 292 desaparecidos, sendo que apenas 19 corpos haviam sido identificados. Talvez poucos ali terão a fortuna de enterrar os seus, sumidos para sempre, sob pelo menos oito metros de lama. Difícil imaginar uma tragédia maior do que esta. Há três anos, o rompimento da barragem de Mariana engoliu vidas, povoados, o rio Doce. É inaceitável que não tenham aprendido a lição. Não se trata de tragédia ou acidente. É um crime.
*Texto: Karla Monteiro
*Foto: Leonardo Ramos